sexta-feira, 24 de junho de 2011

NAUEMBLU E CÓDIGOS DE LINGUAGEM NA POESIA DE DENNIS RADUNZ: EXEUS, LIVRO DE MERCÚRIO E EXTRAVIÁRIO.

JOSÉ ENDOENÇA MARTINS

A tentativa, neste ensaio, de examinar criticamente o espaço ocupado por Radünz (1998, 2001, 2006) no conjunto da tradição poética de Blumenau requer o estabelecimento de algum corpo teórico, ainda que precário. Pode-se pensar que uma teorização provisória desta tradição começa a delinear-se em 1880, a partir da produção poética dos imigrantes, segue nos anos sessenta do século vinte com a poesia em brasileiro e vai encontrar, na década de noventa, os poemas de outro grupo de poetas. Tematicamente abarca dois tipos de dualismos: Saudade e Esperança, dos poetas imigrantes; Blumenalva e Nauemblu, o primeiro como preocupação temática dos anos sessenta do século vinte; o segundo como interesse de fundo dos poetas da década de noventa.
Proponho uma inicial caracterização para esta tradição. Entendo que, de um lado, Saudade e Blumenalva apresentam elementos poéticos comuns, especialmente aqueles relacionados a um tipo de modernidade presente no Deutschtum. Do outro, acredito que Esperança e Nauemblu abrigam temas semelhantes, ligados a uma certa pós-modernidade associada ao Brasilianertum.

Códigos de Blumenalva.

A discussão dos códigos de Blumenalva remete a outros códigos mais antigos na história da literatura blumenauense: os códigos de Saudade. Os dois grupos de códigos se imbricam cronologicamente, Saudade, entre 1880 e 1940; Blumenalva, de 1960 a 1990. Quando penso nos temas que atraem os poetas dos dois códigos, percebo que os do primeiro ampliam os do último, mas também que aqueles se distanciam destes. Na análise da literatura dos imigrantes alemães, Huber (1993) se dedica aos códigos de Saudade. A estudiosa não emprega o termo código – trata-se de uma preferência minha - mas penso que a palavra se aplica ao tipo de análise que desenvolve. No livro Saudade e Esperança: o Dualismo do Imigrante Alemão Refletido em sua Literatura, Huber procura dar conta da presença do tema Saudade nos textos poéticos dos primeiros poetas da colônia de Blumenau. Alguns desses códigos ou temas, segundo a autora, dão contornos aos sintomas de Saudade presentes nas reminiscências que os poetas apresentam da terra deixada para trás, a Alemanha, e deixam conseqüências. Os resultados aparecem no Deutschtum, termo que a autora utiliza para delinear o patrimônio cultural alemão, o qual os imigrantes procuram preservar de variadas maneiras, na colônia, e os poetas não deixam de expressar nos poemas. Huber explica o que significa esta expressão cultural:

O uso deste termo envolve a idéia de conservação de caracteres culturais, raciais e sociais dos grupos de origem germânica, através da igreja, da escola e do lar. Alguns interpretam a palavra apenas como perpetuação da língua e ouros como estados afetivos. Mesmo bilíngües, os imigrantes e seus descendentes continuam a falar no Deutschtum (HUBER, 1993:p.36).

No detalhamento posterior que desenvolve do Deutschtum do imigrante, Huber inclui aspectos como a construção, em território blumenauense, de um locus com características alemãs, simbolizadas no amor ao trabalho, nos olhos azuis e cabelos louros, na alimentação, no orgulho racial, no protestantismo, na experiência imperialista e na cumplicidade racial. Para a autora, estes e outros códigos de Saudade apresentam também aspectos discriminadores e racistas em relação ao brasileiro. E dão sustentação ao “pavor do verkaboklern ou verlusen, ou seja, tornar-se parecido com o brasileiro (luso ou caboclo), que para ele é o caboclo litorâneo, pobre e ignorante” (HUBER, 1993: p.37).
Alguns códigos de Saudade se evidenciam no poema Saudade, de Victor Schleiff. Saudade aparece de imediato no segundo verso: “para trás a pátria deixando, dos pais a casa.” E avança ao último da segunda estrofe onde o narrador reafirma que “e saudoso o olhar para trás viajava.” A viagem à terra-mãe, nos versos do poema, que Saudade permite e convida, aumenta o conjunto dos códigos da sensação de carências e ausências que o poema insere no coração do imigrante através da voz do narrador: a terra natal, o vale tranqüilo, os sinos, a igreja, a labuta dos pais, o sofrimento e a morte dos entes queridos. O poeta fecha a narrativa saudosa com uma pergunta que realça os códigos de Saudade de um ponto de vista crucial para o imigrante: o exílio. “Silencioso sonhar! Nos deu tempo, para tanto/ o novo viver?” (SAUDADE, 2002: p.41)
No poema Teuto-Brasileiro, de Georg Knoll, outros códigos de Saudade se apresentam, como a afirmação de uma identidade alemã monolítica da qual o imigrante alemão não deseja separar-se. No texto, o poeta afirma: “alemão o sou! Ouçam/dos pés à cabeça/sempre, alemã foi minha linhagem.” Um tipo de variação de Saudade aparece em outro poema, Recordação, do mesmo Knoll. O poeta direciona à pátria o olhar saudoso para recuperar a casa do pai, o jardim, as frutas, a escola, a chaminé, a torre da igreja e o sino. Percebe-se, nos versos, como o Deutschtum do narrador está calcado em vivências simples, pequenas, diárias. As palavras de Steil (2003), em estudo da poesia do imigrante, realçam as impressões de Knoll, esquematizadas acima:

Observe-se o mergulho que seus pensamentos permitem em suas lembranças, alçando inicialmente a cidade, como que a sobrevoasse e de lá avistasse a casa dos pais, para só depois alçar o círculo do jardim e por fim, chegar aos frutos. A citação do castelo, que continha a escola, é igualmente infantil (STEIL, 2003: p.53).

A sensação de distância do país natal e a experiência do exílio na pátria nova se intensificam. Na vivência destes elementos existenciais, os códigos de Saudade se transformam em lembranças de padecimento para o imigrante. Saudade se intensifica e seus códigos se tornam lembranças de sofrimento. Knoll conclui a recordação que tem da terra-mãe com uma nota de dor:

Tomado por profunda tristeza.
O quadro com lacrimejante olhar eu vejo,
Do tempo, espaço e laço de família esquecido,
Coração meu, de volta à terra em que nasci (RECORDAÇÃO, 2002: p.51).

Uma breve discussão teórica, aqui, parece pertinente com o intuito de relacionar Saudade às noções de cultura viajora, navio, passagem do meio, diáspora e exílio. Clifford (1997) argumenta que culturas viajam através “das histórias dos movimentos populacionais, exílio e migração em busca de trabalho” e se transformam em culturas diaspóricas, resultantes “das maneiras como as pessoas deixam e retornam as suas casas” (CLIFFORD, 1997: p. 27/28), de forma real ou imaginada em poemas. Ao definir diáspora como “uma casa longe de casa” o autor sugere que, no ambiente diaspórico, culturas se movimentam, se deslocam, se perdem em outras, resistem a outras, e se misturam a outras. Em suma, afirma Clifford:

[With varying degrees of urgency, they] negotiate and resist the social reality of poverty, violence, policing, and political and economic inequality. They articulate alternate public spheres, interpretive communities where critical alternatives (both traditional and emergent) can be expressed (CLIFFORD, 1997: 261).

Nos poemas de Schleiff e Knoll, os códigos de Saudade expressam esta comunidade interpretativa da vida na colônia e a cotejam com a antiga vida deixada na Europa.
Um outro elemento importante na relação de Saudade com a Alemanha dos imigrantes é navio e, dentro dele, a viagem. Para Gilroy (2001) o navio funciona como “uma sistema vivo, microcultural e micropolitico em movimento” e a viagem como “circulação de idéias e ativistas, bem como movimento de artefatos culturais e políticos, caminho de retorno redentor para uma terra natal” (GILROY, 2001:p.38). Infelizmente, os poemas dos imigrantes responsáveis pelos códigos de Saudade eliminam o navio e viagem de chegada de seus versos, pelo menos dos poemas aos quais tenho acesso. Qual a razão? Quando Steil (2002) intitula seu estudo da poesia do imigrante alemão Uma Viagem só de Chegada também deixa de fora o navio e a viagem, foco da sua discussão, insinuado no título. Diferentemente do que acontece na poesia, a ficção do imigrante parece atenta aos fenômenos do navio e da viagem, na diáspora alemã em Blumenau. Por exemplo, no conto Uma Enteada da Natureza, Hering (2000) introduz o navio e, dentro dele, problematiza a viagem de Kathrin à colônia, a desditosa protagonista, tangida pelo sofrimento, a solidão e o medo, paralisada pela monstruosidade de seu rosto disforme:

Quando embarcou no transatlântico, Kathrin não era mais vista por quase ninguém. (...) Noite após noite, ficava sentada debaixo da escada que conduzia à ponte de comando, na escuridão, com cuidado, para que ninguém a notasse. A música do baile, em meio ao ruído de muitos pés dançantes, batia em seus ouvidos. Kathrin só precisava se levantar e observar pela janela, acima de sua cabeça, para ver de muito perto o movimento alegre da vida. Mas o medo de ser vista era maior que a curiosidade (HERING, 2000: p.55-57).

A partir dos anos 60, os códigos de Saudade, desenvolvidos pelo Deutschtum do imigrante alemão, vão encontrar guarida, renovação e alento inusitado em seu mais dileto filho e seguidor: Lindolf Bell. Com Bell, o Deutschtum se movimenta no tempo e no tema. No corpo do poema de Bell, Saudade viaja – não mais no navio ausente, mas no barco – pelo leito do Itajaí-Açu, o rio que entrelaça o imigrante ao seu filho, o alemão ao brasileiro. Do rio como movimento em busca do encontro diz Bell (1980)

Na origem,
O rio. (...)
Na origem
O pó lido do tempo
Escrito em páginas claras
De afluentes águas
Entrelaçadas,
Estrelaçadas (BELL, 1980: p.53).
A respeito do poema, ele escreve:

Mas [Seja o poema] o exercício
Corpo a corpo do poeta
Entre uma dúvida e outra dúvida
Mas dentro do horizonte
Da certeza duvidada (BELL, 1980: p.124).

Em Bell, Saudade que vem do Deutschturm do imigrante e se encontra “escrito em páginas claras” do “exercício/corpo a corpo do poeta” adquire outro nome: Blumenalva. A proximidade entre Saudade do imigrante e Blumenalva de Bell – de outros escritores blumenauenses, também – entre os anos 60 e os 90, possui um invólucro teórico que merece ser discutido, mesmo que de forma breve. Nos últimos anos, venho publicando ensaios (Martins, 1999, 2000, 2002, 2004, 2005), nos quais estabeleço Blumenalva como metáfora da germanidade blumenauense a partir dos anos 60 do século vinte. Nos textos sugiro que, até aquela década, a germanidade que se vale de Saudade para ganhar expressão é descrita em língua alemã. E que, a partir daí, é através da língua brasileira que a germanidade vai ganhar visibilidade. Discuto, então, como Blumenalva dá seqüência à Saudade. Encontro o neologismo Blumenalva num poema de Bell, no qual o poeta escreve esta estrofe:

Minha cidade Blumenália,
Minhas ruas varridas,
Meus crepúsculos alvoradas (...)
Dentro de ti viajo, Blumenau
Blumenalva, Blumenágua (“BLUMENAU”).

Apresento, então, alguns códigos de Blumenalva, os quais procuro aproximar da Saudade dos imigrantes:

Saudade e Blumeanalva se aproximam porque desejam reafirmar como centro da literatura local certa experiência de germanidade, altamente determinante na vida da colônia. Tanto os adeptos de Saudade quanto os defensores de Blumenalva crêem que a literatura blumenauense constrói – reconstrói – localmente o retrato de uma cultura que não se afasta dos valores germânicos que encontram espaço propício na cidade de Blumenau desde a colonização (MARTINS, 2002: p. 82).

Penso que, como força inovadora do talento novo que surge Blumenalva alarga os contornos de Saudade, e a presentifica nos anos 1960 a 1990. Os códigos de Saudade, presentes nos poemas de Schleiff e Knoll, vão se reencontrar na poesia de As Vivências Elementares, de Bell (1980). Na obra de Bell, estão a terra, o pomar, a casa, o rio, o vale, a árvore, a carroça, elementos do cotidiano que já se encontram nas lembranças poéticas que os autores imigrantes têm da Alemanha deixada para trás. Da mesma forma que a diáspora dos ancestrais, a de Bell cria “uma casa longe de casa” onde suas vivências “deixam e retomam as sua casas”, para usar expressões de Clifford (1997) sobre culturas que viajam.
Dois poemas sugerem a construção da “casa longe de casa” que a diáspora e o exílio convidam: Blumenau, de Schleiff; e Blumenau, de Bell. Nos versos do primeiro poeta, a colônia de Blumenau, já centenária, se transforma numa réplica dos jardins da terra natal. Neles, todas as referências recebem tratamento paradisíaco em imagens como “mar de belos jardins”, “largo rio”, “azul do céu”, “a palmeira real”, “jardins de rosas”. Como resultado da experiência paradisíaca surge a vida harmoniosa que somente as rosas e os jardins são capazes de proporcionar. Por isso, “aqui reside felicidade, satisfação, bem-estar” canta o poeta. Na atmosfera poética e idílica dos versos, a cidade é uma imagem na pintura de um grande artista para a qual o poeta chama a atenção do apreciador: ”um belo quadro vocês vêem.” O artista, o criador da bela paisagem bucólica, bem, esse é o imigrante, “o valoroso lutador” que, na companhia da companheira e esposa, se transforma no “corajoso que domou a selvagem mata/que pântanos e juncos transformou em paraíso.” Schleiff fecha as evocações paradisíacas que reúne sobre Blumenau com a sensação do dever cumprido:

Assim digam orgulhoso: a nós nada foi presenteado!
Foi duro lutar, fatigoso o construir!
Com terra de sangrento suor saturada (BLUMENAU, 2002: p.125).

As evocações paradisíacas da cidade, presentes nos versos de Schleiff, reaparecem nos poema de Bell. O azul, os jardins, a paisagem verde e suas folhas, o rio, as ruas limpas, a estrela da tarde são imagens que o poeta utiliza para descrever as belezas que ele aprecia na cidade. Até aí os códigos estéticos de Saudade, veiculados pelo primeiro poeta, e a estética Blumenalva, reforçados pelo segundo, coincidem. De agora em diante, algumas diferenças entre as estéticas dos dois códigos. No seu texto, Bell substitui a metáfora do quadro artístico pela da fotografia. Além disso, em lugar do processo de construção pelo qual passa a cidade no texto de Schleiff, Bell faz surgir uma cidade pronta, acabada, em cujo ventre, o poeta – o narrador, Bell – viaja e cresce. O poeta de Blumenalva escreve:

Dentro de ti viajo, Blumenau,
Blumenalva, Blumenágua
Blumen Auriverde, estou em ti
Cidade-floraberta,
Estou em ti, cidadeestrela,
Estou em ti, estou em ti,
Em ti (“BLUMENAU”).

Bell ainda sugere que Blumenau é o paraíso que deve ser repartido em forma de solidariedade humana: “como uma hóstia/pedaço a pedaço/entre criaturas”, idéia que, em Schleiff, é substituída pela observação contemplativa, distante, sem partilha. Ainda, diferente de Schleiff, para quem o trabalhador braçal – o colono, o imigrante – do primeiro momento da colonização é o construtor de belezas paradisíacas, Bell utiliza o artista, o poeta, o escritor, que vai “deixar poemas escritos/deixar poemas por fazer, lapidar.” Desta maneira, aos “afiados machados” de Schleiff, Bell associa a palavra, como agente de construções de paraísos como Blumenau. E termina suas evocações da “didade-floraberta”, sugerindo Blumenau como o locus “onde a vida se resume/e permanece/para sempre, lume” (“BLUMENAU”).
Penso que, como força inovadora do talento novo que surge Blumenalva alarga os contornos de Saudade, e a presentifica nos anos 60 a 90. Os códigos de Saudade, presentes nos poemas de Schleiff e Knoll, vão se reencontrar na poesia de As Vivências Elementares, de Bell (1980). Na obra de Bell, estão a terra, o pomar, a casa, o rio, o vale, a árvore, a carroça, elementos do quotidiano que já se encontram nas lembranças poéticas que os autores imigrantes têm da Alemanha deixada para trás. Da mesma forma que a diáspora dos ancestrais, a de Bell cria “uma casa longe de casa” onde suas vivências “deixam e retornam as suas casas”, para usar expressões de Clifford (1997) sobre culturas que viajam.
Dois poemas sugerem a construção da “casa longe de casa” que a diáspora e o exílio convidam: Blumenau, de Schleiff; e Blumenau, de Bell. Nos versos do primeiro poeta, a colônia de Blumenau, já centenária, se transforma numa réplica dos jardins da terra natal. Neles, todas as referências recebem tratamento paradisíaco em imagens como “mar de belos jardins”, “largo rio”, “azul do céu”, “a palmeira real”, “jardins de rosas”. Como resultado da experiência paradisíaca surge a vida harmoniosa que somente as rosas e os jardins são capazes de proporcionar. Por isso, “aqui reside felicidade, satisfação, bem-estar” canta o poeta. Na atmosfera poética e idílica dos versos, a cidade é uma imagem na pintura de um grande artista para a qual o poeta chama a atenção do apreciador: ”um belo quadro vocês vêem.” O artista, o criador da bela paisagem bucólica, bem, esse é o imigrante, “o valoroso lutador” que, na companhia da companheira e esposa, se transforma no “corajoso que domou a selvagem mata/que pântanos e juncos transformou em paraíso.” Schleiff fecha as evocações paradisíacas que reúne sobre Blumenau com a sensação do dever cumprido:

Assim digam orgulhoso: a nós nada foi presenteado!
Foi duro lutar, fatigoso o construir!
Com terra de sangrento suor saturada (BLUMENAU, 2002: p.125).

As evocações paradisíacas da cidade, presentes nos versos de Schleiff, reaparecem nos poema de Bell. O azul, os jardins, a paisagem verde e suas folhas, o rio, as ruas limpas, a estrela da tarde são imagens que o poeta utiliza para descrever as belezas que ele aprecia na cidade. Até aí os códigos estéticos de Saudade, veiculados pelo primeiro poeta, e a estética Blumenalva, reforçados pelo segundo, coincidem. De agora em diante, algumas diferenças entre as estéticas dos dois códigos. No seu texto, Bell substitui a metáfora do quadro artístico pela da fotografia. Além disso, em lugar do processo de construção pelo qual passa a cidade no texto de Schleiff, Bell faz surgir uma cidade pronta, acabada, em cujo ventre, o poeta – o narrador, Bell – viaja e cresce. O poeta de Blumenalva escreve:

Dentro de ti viajo, Blumenau,
Blumenalva, Blumenágua
Blumen Auriverde, estou em ti
Cidade-floraberta,
Estou em ti, cidadeestrela,
Estou em ti, estou em ti,
Em ti (“BLUMENAU”).

Bell ainda sugere que Blumenau é o paraíso que deve ser repartido em forma de solidariedade humana: “como uma hóstia/pedaço a pedaço/entre criaturas”, idéia que, em Schleiff, é substituída pela observação contemplativa, distante, sem partilha. Ainda, diferente de Schleiff, para quem o trabalhador braçal – o colono, o imigrante – do primeiro momento da colonização é o construtor de belezas paradisíacas, Bell utiliza o artista, o poeta, o escritor, que vai “deixar poemas escritos/deixar poemas por fazer, lapidar.” Desta maneira, aos “afiados machados” de Schleiff, Bell associa a palavra, como agente de construções de paraísos como Blumenau. E termina suas evocações da “didade-floraberta”, sugerindo Blumenau como o locus “onde a vida se resume/e permanece/para sempre, lume” (“BLUMENAU”).
Códigos de Nauemblu

Como se dá com Blumenalva, Nauemblu também encontra suas origens na literatura dos primeiros imigrantes. Enquanto Blumenalva se associa a, e amplia os códigos de, Saudade, Nauemblu se aproxima dos elementos culturais de Esperança. De novo, é Huber (1993) quem explica os contornos de Esperança, presentes nos textos poéticos dos primeiros imigrantes. A pesquisadora argumenta que, em função do dualismo que nutre a poesia do imigrante com a força do Deustchtum, os códigos de Esperança atuam como a outra face daqueles de Saudade. Ou seja, enquanto Saudade tende a dar conta do apego do imigrante aos valores culturais da Alemanha, Esperança representa o conjunto das identidades do imigrante que busca integração com a cultura brasileira presente na colônia, e no país. Através de Esperança dá-se a combinação do Deutschtum com o Brasilianertum. Huber argumenta que, como código de Esperança, o Brasilianertum apresenta alguns aspectos: a satisfação que o imigrante sente quando se percebe atraído pela cultura brasileira, o desejo de participar desta nova sociedade que o recebe e lhe oferece abrigo seguro. Huber explica esta aproximação, presente especialmente nas novas gerações de imigrantes, aos códigos culturais de matizes brasileiros que ela chama de brasilização – verbrasilianern:

As novas gerações, em contato permanente com o meio nacional, também influenciam as mais velhas, com o processo chamado de verbrasilianern (brasilização ou abrasiliamento) que traz, por exemplo, uma maneira diversa de sentir e utilizar o tempo (aquisição da “paciência” brasileira”), proveniente do ritmo mais lento da vida social e das distâncias espaciais, bem como da maior liberdade aqui existente (controle social menos rígido) (HUBER, 1993:37).

No conjunto da produção poética dos imigrantes, os versos de Schleiff, no poema Os Primeiros Imigrantes, introduzem Esperança, no contato inicial do alemão com a colônia:

Seja, nova Pátria, por mulher e homem,
Terra das esperanças nossas, saudada,
A nós peregrinos do deserto uma Canaã,
Com leite e mel fluindo (IMIGRANTES, 2002: p.86).

A mesma sensação, presente em Schleiff, de que a vida será melhor prossegue no poema Minha Casa Paterna, de Damm. Nele, o narrador sugere grande identificação entre o imigrante e a paisagem local. “Tudo é luz do sol, tudo é perfume de flores-/Não se preocupa nem se aflige o coração aqui” (CASA, 2002: p. 111). Talvez seja a tranqüilidade que a vida na colônia oferece ao imigrante que o faz desejar assimilar o Brasilianertum. É assim que se expressa o narrador do poema Segunda Pátria, de Kahle: “à pátria nova vamos consagrar/nossa mente e os nossos braços” (PÁTRIA, 2002: p. 93).
Assim como tenho feito com a presença da metáfora Blumenalva na poesia blumenauense, venho me dedicando à analise da metáfora Nauemblu no texto poético local. Em vários textos analíticos (Martins, 1999, 2000, 2002, 2004, 2005), traço um panorama do que procuro desenhar com o neologismo Nauemblu. Sugiro que Nauemblu se relaciona com a poesia que a precede de forma dupla. Primeiro, os códigos de Nauemblu rearticulam os de Esperança; depois redimensionam os de Blumenalva. Os meus textos sobre a Literatura Blumenauense estabelecem os contornos teóricos da Nauemblu. No poema Nauemblu, de Radünz (1998), encontro o neologismo que vai servir de base teórica para a discussão literária que me agrada na poesia local. Trata-se de poema premiado em concursos literários, no qual Radünz escreve:

o rio irremovível
vela
sem açus
nauemblu (...)
nauemblu
irremovível,
indevassável
perece (RADÜNZ, 1998: p.25).

Explico quais as possibilidades teóricas que os códigos de Nauemblu disponiblizam para a discussão da poesia de Blumenau, a partir dos anos 90:

A leitura da produção literária local sugere que, diferente da monolítica, fechada, centrada e paradisíaca blumenalva, nauemblu se mostra plural, aberta, descentrada, estranha e nada paradisíaca. Visível na multi-traduzível evocação de nauemblu reside o caos – o estranhamento fértil – que se constrói e se reconstrói em inúmeras possibilidades de tramas e tecidos, tanto inesperados quanto inexplorados, ou desesperados (...). Se inscreve nas forças locais que vão muito além das germanidades, brasilidades e mundialidades culturais que o local é capaz de engendrar esteticamente. Por isso, cabem na nauemblu anamárias e albergálias, capitus, bertílias e kaputs, diablos e jundiás, riovários e sincretinismos, tatuagens niras e espontâneas (MARTINS, 2002: p. 84-85).

Vale repetir que os poemas de Radünz (1998, 2001, 2006) podem ser tomados como uma presentificação, nos anos noventa, ao mesmo tempo dos códigos de Esperança dos imigrantes alemães, e daqueles de Blumenalva de Bell.
Exemplifico.
Em parágrafos anteriores deste estudo demonstro como, no poema Blumenau, de Schleiff, a noção de Saudade se caracteriza através da maneira como o poeta sugere que o machado afiado do imigrante é o instrumento que vai dar à colônia a graça, a beleza e a pujança econômica da velha pátria. Proponho também que, no poema Blumenau, de Bell, o narrador abandona o machado para formatar a colônia à imagem e semelhança da mãe, mas se vale da palavra para obter efeitos de imitação semelhante. À maneira dos dois poetas, Radunz também deseja plasmar Blumenau. Porém, diferente daqueles, o novo poeta não o faz a partir do modelo da vela pátria. Ele transcende o padrão alemão, e inclui outros modelos. Sugiro que, se em Schleiff, Blumenau resulta dos “afiados machados” do colono imigrante e, se em Bell, “a identidade real” da cidade nasce da palavra do poeta, em Radünz, Blumenau não é o produto de algum demiurgo – colono, poeta - ou de seu instrumento de trabalho – machado, palavra. Em Radünz, Blumenau não é mais Blumenau, é Nauemblu. Ou seja, Blumenau vira Nauemblu por geração espontânea: a palavra que se auto-inventa, se auto-cria, se auto-produz, se “auto-nasce”, no caos. O que implica todas as possibilidades de significação, resignificação, ou des-significação.
Vejamos.
Os códigos da palavra em processo de auto-criação que Nauemblu evidencia encontram-se presentes nos três livros de poema de Radünz: Exeus, Livro de Mercúrio e Extraviário. Comecemos com a discussão da linguagem auto-referencial presente no primeiro livro. O título do livro – Exeus (1998) – já sugere a possibilidade da auto-invenção vocabular ao permitir uma leitura do neologismo como ex-eus, ou e-zeus, ex(e)us. Porém, a mais instigante, inesperada e criativa auto-referência em um termo se vincula à palavra Blumenau que, no poema, assume a forma nauemblu. No poema Habite-se, a palavra teopsia, em se contrapondo a autópsia, parece uma significação mais radical que as possibilidades de leitura do termo invivida. Os vocábulos ideiagem, imaginura e arcatura concorrem em qualidade com os demais indicados acima. O neologismo por-de-ser também é sugestivo em criatividade. Algumas auto-ressignificações poéticas, porém, se aproximam da construção vocabular elaborada por Bell em Blumenalva, na qual a recriação se dá por meio da adição de uma palavra a outra já existente, geralmente separadas por hífen. Algumas delas são: sal-gema, não-ser, só-tão, entranha-palavra.
É esta busca insistente da palavra auto-referente que vai emprestar contornos mais amplos ao sentido de migração que já se encontra estabelecido nos códigos de Esperança dos imigrantes. Lá, a migração se dá entre códigos culturais, mais precisamente entre o Deutschtum e o Brasilianertum; aqui, a migração acontece na linguagem. Radünz anuncia que “migro/intra-uterinamente/cavo/a carnação”, primeiro no fonema, sem seguida, no poema. É interessante notar que o imigrante de Esperança tem um oceano cultural a navegar entre a cultura alemã que traz e a cultura brasileira que assimila. O narrador de Radünz tem um rio em cujas águas cruza, migra, navega, mas, especialmente, guarda linguagens.

O rio reluz crepuscular
Em leme de nau névoa ia
Ou sede ou água guardar (EXEUS, 1998:p.48).

Na verdade, trata-se de rio pregado na paisagem lingüística do poeta, por isso, é “o rio irremovível”, “o rio indevassável”, cujos conluios são a própria experiência local, em forma de enchentes ou de discursos poéticos renovados, múltiplos, às vezes, caóticos como os de Nauemblu.
É no discurso poético, multifacetado de Radünz que as águas do rio tecem possibilidades existenciais. Em que a voz que se espalha pelo texto, uma voz de exeus, se encontra “em vias/de evoluir o rio/à foz”. A aquosidade do rio arma “a rede/com sede de ramas”. Este rio navegável fornece as águas das línguas que o poeta necessita para a travessia entre as diversas manifestações de nauemblu, para onde todas as linguagens e discursos confluem: ora é o inglês em “the fish”, ou “poem”, ora, o latim de “ora pro-nóbis” ou de “credo quia absurdum”, ora a língua indígena de “Metempsicose”. Esta confluência de linguagens e línguas, águas e ramas vai desembocar na sonoridade inesperada de dois versos, um latino; outro, brasileiro:

Absurdum absurdum absurdum
Fina surdina abala o bumbo (Exeus, 1998:p.45).

A linguagem poética, em Livro de Mercúrio (2001), não abandona sua ambição auto-inventiva. Ao contrário, a amplia e a rearticula. Palavras novas e inusitadas como desterráqueos se juntam a regenerrando, olvidro e invióbvio e vão provocar estranhamento diante de outras novidades vocabulares de mais óbvia pujança criativa. Neste grupo, repete-se a formula de Bell em palavras como peixes-cofre, estilhaços-fantasma e ninfografia, todas marcadas pela combinação de ternos.
As línguas também reaparecem nesta coleção de poemas. Não apenas em sua variedade – brasileiro, latim, xokleng, inglês, alemão – mas em sua função múltipla que, para o poeta e o narrador dos poemas, deve ser vista como falácia e simulação. Tomar a língua como um discurso único ou como objeto do homem é perigoso. Aqui, a língua, em suas variações – linguagem, discurso, comunicação – é sempre sujeito. Por isso, em sua subjetividade e sensualidade, a língua é dotada de agenciamento vivo:

A língua enleia a leveza
E levita em liame de gula
Entre acres licores e lábios
Onde a fala se lava: simula (MERCÚRIO, 2001:p.40).

Àquelas línguas que já estão presentes em Exeus, o poeta acrescenta ainda o idioma africano ioruba, o japonês e repete o latim em infans, o menino em cuja experiência a vida não se traduz em prática, mas em discurso, em linguagem, em fabulação, ou seja, auto-construção. O poeta, como faz na língua que enleia e levita, aqui insinua que a fala fala o ser, impossibilitando que o ser fale a fala. Língua, linguagem, discurso são detentores de subjetividades autônomas:

O fio de fabular a fala
Esfuma na infância e fale
Em flora de falhas: fia
O fóssil do afã e inflama
O fiapo de fábula (MÉRCURIO, 2001:p.37).

Pode-se dizer que é a partir da auto-criação vocabular que combina formas inusitadas com aspectos menos inesperados que a linguagem poética de Radünz se amplia e se re-articula em outras possibilidades, como a introdução do rio e seus conluios, como já acontece no primeiro livro. Agora, a presença do rio é ativa como a linguagem poética porque não apenas “o rio relê o seu rastro”, mas porque também “o rio relê o seu rumo”. E o que é mais relevante parece ser o fato de que “o rio relido nos restos/do raso rabisco de remos”, une os remos de duas etnias que singram aquelas águas, do percurso ao destino: os primeiros indígenas e os primeiros imigrantes, discursivamente presentes nas duas frases citadas, a indígena e a alemã:

enh mãg há kyl nã ten – ge mu.
.................................................
Im Himmel, da Gibt’s kein Bier
Drum trinken wir es hier (RADUNZ, 2001: p.29)

A proximidade espacial entre as duas línguas que o poema estabelece por meio do leito do rio não parece acompanhar a realidade histórica de destruição entre os segmentos étnicos. A conclusão do narrador é a de que “na lâmina d’água a lágrima ecoa”, aproximando, assim, texto poético e fato histórico.
A auto-reinvenção da linguagem retoma seu curso em Extraviário (2006). Neste inovado conjunto das possibilidades auto-criativas da língua poética, imperam palavras como ‘ssáparos’, desobumbra, ‘rápassos’, bocavulário, e onfalos. Tais novidades lingüísticas são exemplos maiores das capacidades da auto-refrencialidade contida na língua dos poemas. As menos inusitadas, mesmo assim dotadas de substancialidade criativa, fazem paralelo com as formas como a linguagem poética se desenvolve em Bell, à semelhança da sua presença nas duas obras anteriores. Só para citar, temos lesa-informação, erva-casta. E, ainda, uma série de combinações entre a palavra erva e outras, que vão desde uma tal erva-moira a erva-vagina.
A constatação interessante do autor diante das energias que a língua elabora para si mesma é dizer que “a língua não tem osso.” Porém, tem carne, pode-se adicionar, cuja elaboração se vale do espaço onde a boca e o vocabulário – bocavulário – se encontram para a pronúncia. E aí, então, a língua se pronuncia a si mesma, dizendo que:

E, então, bafeja e babuja
O sabor bom ainda broto
Se, no bojo dessa língua
Desabotoa o beijo e basta
A si, língua de línguas (EXTRAVIÁRIO, 2006: p. 42).

É no âmbito da auto-resgnificação v(b)ocab(v)ular da linguagem poética que o rio retoma suas águas de significação e re-significação em Extraviário. “O rio rebentas suas bordas”, diz o narrador, insinuando que as águas precisam transcender seus limites e ganhar outros percursos, quem sabe as enchentes anuais. O poeta repete as novas dimensões das águas ribeiras:

O rio é o rebento desta margem
A bordo de um resto de ribeiras:
Baldio ao desandar torrentes
Sobradas no barral da enchente:
Num rio de ires sonoroso: rim (EXTRAVIÁRIO, 2006:p. 22).

Por todo texto, a história liquefeita das possibilidades lingüísticas da poesia que ultrapassam os limites do rio ganham outras aquosidades, anteriores ou posteriores a ele. Encontram-se, então, as múltiplas aquosidades da “chuva [que] não me cura as horas mortas”, e das “procuras pelas águas prematuras”. Não é preciso imaginar o dilúvio com que as informações aquosas inundam o texto. Os versos brotam ora “no aguaçal de sal comum”, ou trazem “o ar baldio da chuva”, ou espreitam “no escuro da água falsa”. Às águas naturais há ainda a possibilidade da adição das águas humanas, oriundas da “lágrima sem farmácia”, do “ar de urânio em minha língua”.
Diante da língua que se auto-escreve ou se auto-extravia em mais línguas, linguagens e discursos, o poeta insiste em querer afirmar sua subjetividade humana. Porém, o resultado é sempre a confissão do sujeito que grita a precariedade de sua existência. Primeiro, ele admite que “sou foragido do juízo”, mais tarde alardeia que “eu, o escritor-fantasma”. Assim, admite sua imaterialidade. Esta é a única e possível admissão do escritor diante da palavra que se auto-enuncia: fantasma porque instrumento da palavra, sem aura, sua única remissão é despedir-se como autor: “e, então, despeço-me de ex-eus,” diz o narrador, para insistir mais adiante que “ali: aqui: margino a sós minha ossama.” E, também, o ghost-writer conjectura sobre a revisão do seu “sistema de sentires, de viveres e de haveres” por que conclui que são “as minas d’água das palavras que dessangram a coisa escrita.”
Para finalizar, do poeta, dos seus narradores e do leitor pode-se dizer, como o escritor-fantasma, da literatura [e da poesia] que se auto-enuncia:

O êxtase do instante de leitura que é (como o é durante o orgasmo o desmembramento de tudo o que em nós é identidade) o lugar erradio em que o leitor [o poeta, seus narradores também] se desorbita entre dois seres: o si mesmo e o ser [não-ser] no qual tornou-se, atravessado pelo texto (EXTRAVIÁRIO, 2006: p.53).

A palavra, em sua autonomia, vence por fim. O poeta desorbita-se, felizmente. O texto – língua, linguagem, fala, discurso – mata o autor, o poeta.

Modernidade e Pós-Modernidade: Novo Talento Entre Tradição e Ruptura


Sob este título me dedico a estabelecer relações entre a produção poética local e a teoria literária global. De um modo geral, penso que o local pode se articular com o global. Acredito que a discussão da poesia blumenauense, dos poetas imigrantes aos poetas dos dias de hoje, em cujos poemas, Saudade e Blumenalva, Esperança e Nauemblu buscam afirmações e espaços estéticos, pode receber uma contextualização mais ampla e abrangente. Insisto em que o artista não deseja ver-se restrito apenas ao local, mas almeja integrar o local e o universal. No âmbito da literatura em Blumenau, o poeta não almeja apenas a proximidade com o machado, necessário e útil no momento inicial da empreitada artística; menos ainda anseia somente a dependência da palavra que avança para além das possibilidades do machado, mas que, como machado, apenas desenvolve uma de suas capacidades: o de funcionar como instrumento de criação de objetos exteriores. O poeta blumenauense, a partir dos noventa do século vinte, busca a palavra que se auto-cria e se auto-recria.
Na maneira como percebo as relações entre o local e o global, procuro acoplar modernidade a Saudade e Blumenalva. Procuro também deixar claro que Blumenalva é um avanço estético em relação a Saudade. Assim como, ainda que exercendo a função de instrumento de construção de algo externo a si mesmos, a língua na poesia de Bell, se transforma num ganho poeticamente significativo em relação ao machado, no poema de Schlleiff. Noto que o braçal necessita do mental, que os dois são habilidades úteis e complementares no tempo, colocando lado a lado o velho e novo. A idéia de modernidade que interessa ao estudo vem das relações que Eliot (1989) estabelece entre o novo artista e a tradição. O crítico e poeta anglo-americano argumenta, no ensaio Tradição e Talento Individual, que as relações entre uma tradição literária já totalmente estabelecida, firmada, e o talento individual que aparece são interessantes porque sugerem um tipo de harmonia entre adaptação ao, e transformação do, cânone vigente. Eliot escreve que uma tradição não é uma herança que alguém recebe como doação. “Se alguém a deseja,“ ele afirma, “deve conquistá-la através de um grande esforço” (ELIOT, 1989:p.38). Trata-se de um diálogo, um convívio – nunca uma ingênua conformação – entre os artistas do passado e os do presente. Para Eliot, a tradição é um conjunto de obras que pré-existem ao novo talento que surge. Estas obras, ou seja, estes “monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si (...) completa antes que a nova obra apareça” (ELIOT, 1989: p.39). Eliot explica relação entre a tradição e o talento individual:

Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os aristas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos (...) O que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente com relação a todas obras de arte que a precedem. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo (ELIOT, 1989: p. 39).

A proposta de Eliot é relevante, mas apresenta uma fraqueza: não permite ruptura com o, nem subversão do, passado no presente. Aí reside a salvação da tradição e do talento individual que chega, a quem é permitido inovar desde que não rompa, desde que atue nos limites da tradição. Gysin (2004) explica a força e a debilidade da linguagem – poética e ficcional - do escritor moderno:
The modernist [writing] is experimental and innovatory in form; it foregrounds the subconscious and unconscious regions of the human mind; it frequently breaks the linearity of the plot and often makes use of “new” strategies of point of view, such as the technique of “stream-of-consciousness.” Nevertheless, it usually compensates for such breaches of conventional mimetic writing by trying to establish unity, closure, identity, etc. on another (higher or lower) level of discourse (GYSIN, 2004: p. 140-141).

Em outras palavras, há sempre a necessidade, da parte do artista moderno, de encontrar uma tábua de salvação. A ruptura é demais para ele. Para se sentir a salvo da fragmentação à qual a ruptura o levaria, o modernista faz “use, however ironically, of older (and “safer”) literary and musical forms as well as mythical topics from older literary and religious sources” (GYSIN, 2004: p. 141-142).
Na Literatura Blumenauense, a partir dos anos 60, os códigos da Blumenalva belliana realizam exatamente o fenômeno que o moderno Eliot aponta. Eles invadem os códigos de Saudade dos poetas imigrantes e os alteram, de modo a rearticular as relações, as proporções e os valores entre aqueles e estes novos códigos. Bell não abandona o padrão alemão que Schleiff utiliza para plasmar Blumenau. Ao contrário, reafirma o modelo Deutschtum, atualizando-o no tempo: no lugar dos “afiados machados” e da pintura, Bell coloca a palavra e a fotografia. Na relação que mantém com o passado, Bell pode ser tomado como poeta moderno, aquele que se conforma ao credo estético que Eliot propõe à tradição da modernidade.
A pós-modernidade, pela maneira como enxerga a língua, pontifica em Nauemblu e no tratamento que Radünz dispensa à linguagem. Quero sugerir que, neste sentido, a superação da palavra de Bell como instrumento pela palavra como auto-referência é prerrogativa da pós-modernidade como teoria, e da de Radünz como prática poética. Pós-modernidade é essencialmente palavra auto-criadora: língua e linguagem, em processo de auto-referencialidade como sugere Marshall (1992):

Postmodernism is about language. About how it controls, how it determines meaning, and how we try to exert control through language. About how language restricts, closes down, insists that it stands for some thing. Postmodernism is about how “we” are defined within that language, and within specific historical, social, cultural matrices (MARSHALL, 1992: p. 4).

Ou, ainda, como deseja Gysin (2004), a pós-modernidade “implies a text assuming a life of its own” (GYSIN, 2004: p.140), ou seja, texto autônomo. Neste aspecto, ao se subordinar às forças de auto-referencialidade da linguagem literária – poética, ficcional e outras – os escritores – poetas, ficcionistas e outros - pós-modernos, segundo Gysin:

Invert or subvert hierarchies, emphasize dislocation, antitotalization, infinite regress, etc., and, together with fabulation, textual play, and self-referentiality, they mostly valorize fragments, highlight peripheral phenomena, focusing on the centrifugal rather than the centripetal forces (GYSIN, 2004: p.142).

É no sentido que Marshall (1992) atribui à língua, à linguagem e à palavra pós-modernas, e que Gysin (2004) emprega para examinar a função do escritor na pós-modernidade, que desejo introduzir os conceitos de diferença e repetição, de Deleuze (2006). Com eles procuro sugerir que a pós-modernidade poética de Radünz se constrói a partir das formas como repete o que já se encontra na poesia de Bell, ao mesmo tempo em que se diferencia do poeta dos anos 60.
Quando colocam língua e literatura lado a lado Deleuze/Guattari (1975) apresentam dois aspetos desta relação. Primeiro, argumentam que a enunciação literária é dotada de auto-geração, dizendo que

Il n’y a pas de sujet, il n’y a que des agencements collectifs d’énonciation – et la littérature exprime ces agencements, dans les conditions ou ils ne sont pas donnés au-dehors, et ou ils existent seulement comme puissances diaboliques à venir ou comme forces revolutionnaires à construire (Deleuze/Guattari, 1975 : p. 33).

Segundo, sugerem que língua se desterritorializa, processo no qual, «le premier caractère est de toute façon que la langue y est affectée d’un fort coefficient de déterritorialisation» (Deleuze/Guattari, 1975: p.29).
O tipo de desterritorializção lingüística que interessa aqui não se refere àquele que os teóricos franceses percebem no tipo de literatura que denominam de menor, atribuída à obra de Kafka como “literatura menor”. Prefiro utilizar a idéia de desterritorialização que percorre o texto literário por meio da noção de eterno retorno, manifestado nos processos de diferença e repetição, como o examina Colebrook (2002). O estudo que realiza da obra de Deleuze permite a Colebrook afirmar que:

True literature, as minor literature, is therefore an instance of Deleuze’s concept of eternal return. The only thing that is repeated or returns is difference; no moments of life can be the same (...) The power of life is difference and repetition, or the eternal return of difference. Each event of life transforms the whole life, and does this over and over again (COLEBROOK, 2002: p. 121).

Quando se atém mais especificamente à diferença e à repetição, os dois processos que materializam o eterno retorno , Colebrook escreve que

Maximum repetition is maximum difference. Repeating the past does not mean parroting its effects, but to express an untimely power, a power of language ti disrupt identity and coherence (…) On Deleuzean model of difference and repetition, a repeated word may look the same; but it is not sameness that produces repetition so much as difference. (…) Real repetition maximizes difference (…) A minor literature repeats the past and present in order to create a future. It is a transcendental repetition: repeating the hidden forces of difference that produce texts, rather than repeating the known texts themselves (COLEBROKK, 2002: p. 119/120).

As noções de eterno retorno, de diferença e de repetição encontram-se presentes na poesia de Radünz. Percebo que, nos conjuntos de poemas analisados, tais processos se conduzem duplamente: externamente, quando Radünz repete o interesse de Bell - representante do passado poético da cidade - pela língua e seus discursos rebeiros, mas também se diferencia daquele por que, enquanto Bell atribui instrumentalidade à língua, em Radünz é a própria língua que engendra sua auto-refrencialidade. Nela, a Blumenau de Bell vira Nauemblu em Radünz. E, internamente, quando Radünz repete, nas diferentes manifestações presentes nos três livros, as várias experiências de auto-referencialidades lingüísticas de que seu texto poético é capaz.




Conclusão

O eterno retorno – ou seja, a dupla repetição e diferença do passado e do presente literários blumenauenses que a poesia de Radünz edifica – não apenas o aproxima de Deleuze, mas também o afasta de Bell e o faz romper com ele. Para Deleuze, n palavras de Colebrook (2002), a língua inovadora se vale de um único poder, “o poder da língua de romper”. O Radünz real, diferente daquele presente nos poemas, pensa diferente e rejeita rompimento com Bell.
Vejamos.
Em discussão da poesia blumenauense, escrita por alguns poetas (Martins, 1993) quando ainda não havia notado a forte presença das metáforas Blumenalva e Nauemblu, incluo Radünz no grupo dos metapoetas e digo que seu centro “é a palavra, língua e a linguagem” (p. 42), e concluo o texto, afirmando que “os poetas [metapoetas e humanistas] descritos neste artigo realizam uma proposta estética atual, sintonizada com algumas correntes que preocupam os artistas do mundo todo” (MARTINS, 1993:p.43). O próprio Radünz (1999) já expressa esta consciência em relação ao passado quando, em resposta à posição que apresento em outros artigos (MARTINS, 1999, 2000, 2002, 2004, 2005) em que afirmo que Nauemblu se conduz como ama ruptura a Blumenalva. E reage afirmando que:

Como leitura do movimento literário blumenauense, a proposição dualista de Martins omite a interinfluência entre as linguagens literárias dos protagonistas da Blumenalva e da Nauemblu e, ao propor a exclusão mútua de suas propostas, não abarca o rio subterrâneo que flui intenso – uma “influência sem angústia” – entre a poesia de Lindolf Bell, Dennis Radünz e Marcelo Steil. Nesse sentido, a precisão da análise de Martins no que concerne à contextualização ideológica das duas correntes, pouco ou nada revela da sutil coincidência das metáforas recorrentes em Radünz e Bell, por exemplo: o rio e suas águas. Riverrum, como em James Joyce, o “riocorrente” (RADÜNZ, 1999:p. 08; inédito).

Entendo a avaliação que o poeta faz da minha apreciação de Nauemblu e Blumenalva naquele momento. Agora, quero afirmar que o presente artigo procura redimensionar aquele posicionamento. Ao fazê-lo desejo sugerir que a pós-modernidade de Radünz ainda necessidade de modernidade de Bell. Incapaz de ruptura, Radünz busca uma “salvação” que garanta certo grau de segurança que a tradição literária, simbolizada da poética de Bell, ainda pode oferecer. Talvez seja essa a força do sucesso literário: manter um pé no passado, outro no futuro. E ao aproximar de Esperança a Nauemblu poética de Radünz fico imaginando como tudo isso permanecerá quando a pós-modernidade – se alguma ali estiver - de Bell for discutida.
Radünz cresce poeticamente quando se afasta da “ordem ideal” que Eliot (1989) enxerga na Modernidade e que atribuo, também, a Blumenalva. Basta um olhar à palavra para se perceber que Nauemblu não se pauta pela ordem – ideal ou real – mas pela desordem criativa. E é assim que vale apreciá-la, artística e poeticamente.

Referências

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quinta-feira, 23 de junho de 2011

LITTÉRATURE COMPARÉE, TRADUCTION ET AFRO-AMÉRICAINITÉE : La Signification comme la Réécriture de la reconstruction du corps de l'ancien esclave dans le Roman Beloved de Toni Morrison

JOSÉ ENDOENÇA MARTINS

Résumé
Cet article vise à discuter la traduction de Toni Morrison au Brésil, en particulier celle de son roman «Beloved» (1987), dont il y en a deux, la premiere en 1994 et la deuxième en 2007, les deux comme «Amada». Dans l'article, je vais insister sur le personnage Baby Suggs, en particulier le discours qu'elle adresse aux esclaves libérés de la nouvelle communauté qu'ils ont créée après leur évasion de la ferme Sweet Home. Les paroles de Baby Sugss les appellent à reconstruire leur communauté et leur corps, car «là-bas (...) ils n’utilisent que [le corps], l’attachent, le lient, le coupent et le laissent vide» (MORRISON, 1987 : 88). Afin de comparer le traitement accordé à la parole de Baby Suggs à la fois par le texte source et les deux textes cibles j’appliquerai le concept «Signifyin(g) » [Signification] de Gates (1988). Gates l’utilise pour expliquer comment des textes noirs parlent et conversent. Cette conversation textuelle de «Beloved» avec les deux «Amadas» brésiliens – et les «Amadas » entre eux-mêmes – tient dans les paroles de Gates: «quand on signifie un texte sur un autre texte, par une révision «tropologique» ou la répétition et la différence, l'énonciation en double voix nous permet de tracer de discrètes relations formelles dans l’histoire de la littérature afro-américaine. Signifyin(g), alors, est une métaphore pour la révision de texte» (Gates, 1988: 88). La double voix textuelle qui relie les trois textes en cours de comparaison s’appuie sur la résistance que ces esclaves libérés offrent aux menaces des propriétaires d’esclaves. Cette résistance avec laquelle le colonisé s'oppose au pouvoir du colonisateur, présente dans «Beloved» et les deux «Amadas» brésiliens, donne à l'étude une perspective post-colonialiste. Alors, je vais comparer le texte source avec les deux textes cibles du point de vue du post-colonialisme (Hatim & Munday, 2004), les traitant comme littérature comparée (Moretti, 2000). Afin de réaliser cette étude sur la rencontre entre ces trois textes, et entre le post-colonialisme et la littérature comparée, j’aborderai la traduction comme une réécriture (Lefevere, 2007) et comme un polysystème (Even-Zohar, 1990). Dans mon article, la traduction et la réécriture de «Beloved » comme des «Amadas » seront analysées à partir d'un traitement méthodologique qui comprend trois aspects du corps-amour. Je vais me concentrer sur (1) comment Baby Suggs adresse ses paroles à la fois aux esclaves libérés et aux propriétaires d'esclaves; (2) comment elle définit le corps de l'ex-esclave entre les éléments «ici» et «là-bas»; et (3) la façon dont elle parle à la fois des parties internes et externes du corps noir.
Mot Clés : Signification, Corps Noir, Amour, Réécriture, Post-Colonialisme, Traduction, Littérature Comparée.


Cet article approche la littérature comparée de la traduction à travers l'étude du roman Beloved (1988) par l’écrivaine Afro-Américaine Toni Morrison et ses deux traductions en portugais du Brésil, la première en 1994 par Massaro, la seconde faite par Siqueira en 2007, les deux comme Aimée. L'étude comporte deux parties: la première souhaite établir les fondements théoriques, pour lesquels J’utilise une perspective post-coloniale, celle qui me permet d'employer le terme Signification de Gates (1988) pour faire parler la littérature comparée avec la traduction. La deuxième partie s'attache à montrer comment les trois textes - le roman source et les deux textes cibles – parlent entre eux-mêmes.

1. La Signification Noire et Ses Significations dans le post-colonialisme

Le post-colonialisme est le champ théorique qui nous permet de voir la signification noire et ses significations littéraires et traductoires. Hatim et Munday (2004) definissent le post-colonialisme comme «une approche culturelle générale à l'étude des relations de pouvoir entre différents groupes, cultures ou peuples, oú la langue, la littérature et la traduction peuvent jouer un rôle » (HATIM & MUNDAY, 1994 : p. 106). À partir «des relations de pouvoir » que les maîtres et les esclaves protagonisent dans le roman Beloved, découlent les autres relations asymétriques impliquant la culture, la langue, la littérature et la traduction, éléments présents dans la définition que les deux penseurs mettent dans le concept. L’inclusion de Beloved, de toute l’oeuvre de Morrison et de la production littéraire afro-americaine elle-même sous le « parapluie » conceptuel théorique et pratique du post-colonialisme est evidencié par l’affirmation de Tyson (1999) que ces «champs se concentrent sur l'expérience et la production littéraire des peuples dont l'histoire est caractérisée par l'extrême oppression politique, sociale et psychologique » (TYSON, 1999 : p.363). Il suffit de penser à la traite des Africains aux États-Unis, à l’esclavage, et au système «Jim Crow» pour voir comment l'existence des noirs américains dans la réalité et dans la littérature, défie la relation asymétrique de pouvoir que le post-colonialisme dénonce. En utilisant les relations de pouvoir inégales entre les maîtres et les esclaves à partir de la vision théorique du post-colonialisme je suggère, comme Hatim et Munday (2004), la centralité de la traduction et, à travers elle, de la littérature comparée, dans ces réflexions. Pour le post-colonialisme l’action de traduire inclut les relations de pouvoir qui, selon Munday (2001), comprennent «la résistance aux puissances coloniales et, plus généralement, des études de l’effet du déséquilibre des rapports de pouvoir entre colonisé et colonisateur » (MUNDAY, 2001 : p. 133).
Dans les possibilités que le post-colonialisme ouvre aux approches de la littérature afro-américaine à la littérature comparée et à la traduction il y a de l’espace pour y mettre la double voix de la signification. Selon Gates (1986), la signification est un mot de contact textuel qui permet que des textes parlent entre eux-mêmes. Il le définit comme un trope de « répétition et révision, ou répétition avec un signe de différence» (GATES, 1988 : p. xxiv). Il continue :

La tradition noire est à double voix. Le trope du Livre Parlant, des textes de la double voix qui parlent à d'autres textes, est la métaphore d’unification au sein de ce livre. Signification est la figure de deux voix, illustrée par des représentations d’Eshu dans la sculpture comme possédant deux bouches. Il existe quatre sortes de relations textuelles à deux voix que je souhaite définir (GATES, 1988 : p.xxv).

Ces quatre types de signification – la révision tropologique, le texte qui parle, les textes parlants, la réécriture de texte parlant – Gates les voit comme la double voix textuelle qui donne à la tradition littéraire noire ses péculiarités culturelles, linguistiques, stylistiques et discursives. La signification, Gates ajoute, «ce trope coloré souvent drôle survient dans des textes noirs comme thème explicite, comme stratégie rhétorique implicite, et comme un principe de l’histoire littéraire » (GATES, 1988 : p. 89). Dès les narratives des esclaves jusqu’à présent la signification est comprise comme la répétition d’un trope, «avec des différences, entre deux ou plus des textes» (GATES, 1988 : p. xxv). Il insiste :

Des textes noirs signifie sur d’autres textes noirs dans la tradition en s’engageant dans ce qu’Ellison a défini comme critiques implicites formelles d'utilisation des langues, de la stratégie rhétorique. La signification littéraire, alors, est semblable à la parodie et au pastiche, où la parodie correspond à ce que j’appelle Significaion motivée tandis que pastiche correspondrait rudement à Signification démotivée. Par la motivation, je ne veux pas dire l'absence d'intention, car la parodie et le pastiche impliquent l'intention, allant de la critique sévère à la reconnaissance et au placement dans une tradition littéraire (GATES, 1986 : xxvii).

En considérant le rôle que la signification peut jouer dans une approche entre le post-colonialisme, la littérature afro-américaine et la traduction, je spécule que la traduction de textes noirs est une signification de la double voix dans laquelle la voix du texte source parle avec la voix des textes cibles. Derrière cette conversation textuelle, on voit ce mouvement de va et vient entre les trois textes, c’est-à-dire, on découvre que la traduction résulte de la migration du texte source au texte cible. Je spécule aussi que sous le « parapluie » post-colonialiste, la race, la traduction et la littérature comparée s’articulent à travers les mobilités littéraire, traductoire, raciale et corporelle. Je pense que nous pouvons faire trvailler la mobilité comme la ligne qui coud les élèments de l’analyse. Depuis la plus générale – la littéraire – à la plus spécifique – la corporelle – l’idée de mobilité cimente la mobilité de mon texte, considérant ce qui est entendu par l’inégalité et la différence entre les littératures, les traductions, les races et les corps. Moretti (2003) explique que la mobilité littéraire résulte de «l’inégalité du système littéraire mondiale: d’une inégalité qui ne coïncide pas avec l’inégalité économique, vraie, et permet une certaine mobilité – mais une mobilité interne au système inégal, non alternative à lui » (MORETTI, 2003 : 78). Moretti continue : «ce mouvement de la périphérie vers le centre est moins rare, mais encore tout à fait inhabituel, alors que celui du centre vers la périphérie est de loin la plus fréquente » (MORETTI, 2003 : 76). C’est le cas ici puisque c’est la traduction de l’anglais des États-Unis vers le portugais brésilien.
La mobilité traductoire découle du terme latin « translatio ». Translatio ne considère pas seulement la notion de passage de la signification du texte source vers le texte cible, mais le mouvement en particulier entre le lecteur et l’auteur. Et aussi la mobilité entre les deux traductions de Beloved comme Amada, celle de Massaro et celle de Siqueira. Schleiermacher (2004) explique que le mouvement de traduction est effectué par le traducteur, en comportant deux mouvements antagonistes qui s'excluent mutuellement: l'un s'adressant au lecteur, l'autre vers l'auteur. Schleiermacher écrit que «soit le traducteur laisse l'auteur en paix, autant que possible, et le lecteur se déplace vers lui, soit il laisse le lecteur en paix, autant que possible, et l'écrivain se déplace vers lui » (SCHLEIERMACHER, 2004 : 49). La mobilité raciale s’inscrit elle-même sur le champ de l'histoire de l'esclavage comme un mouvement d'esclaves d'Afrique vers les Amériques et, aux États-Unis, du sud au nord, à travers l'émigration, après l'abolition de l'esclavage.
Attisée par ces mobilités – littéraire, translationnelle et raciale – la mobilité ici gagne le cœur de la proposition de mon texte. Le corps noir de l'ancien esclave est le serviteur du mouvement. Dans Beloved, Morrison dessine le mouvement du corps des anciens esclaves, en le transformant en la célébration de fête qui commémore la fuite de l'esclavage vers la liberté, et la préparation de la première communauté noire libre pour les nouveaux temps. Il s’agit d’un mouvement rééduqué parce que c’est le corps violé qui maintenant sera aimé. Pour l’étude de la traduction je sélectionne le sermon d’auto-affirmation que Baby Suggs donne à un auditoire attentif et avide d’amour-propre. Je compare le traitement de traduction que les traducteurs Massaro et Siqueira ont donné à la prédication de «Baby Suggs, vénérable,» que:

Suivie par tous les Noirs, hommes, femmes et enfants, capable de faire le trajet, portait son coeur jusqu’à la Clairière – un vaste endroit déboisé, coupé au profond des bois nul ne savait pourquoi, au bout d’un sentier connu uniquement des daims et de ceux qui avaient un jour dégagé le terrain. Dans la chaleur de chaque samedi après-midi, elle s’asseyait dans la Clairière tandis que les gens attendaient parmi les arbres (MORRISON, 2009 : 126).

Avant de commencer à parler Baby Suggs exhorte les enfants, les femmes et les hommes à participer au mouvement collectif d’auto-amour physique. Aux enfants, elle leur dit : «que vos mères vous entendent rire. » Aux hommes, elle leur demande «que vos femmes et vos enfants vous voient danser. » Aux femmes, elle les invite: «pleurez (...) pour les vivants et les morts. Allez-y, pleurez» (MORRISON, 2009 : 126). La narratrice résume leur mobilité corporelle et festive :

Enfants riant, hommes dansant, femmes pleurant, puis tout se mélangeait. Les femmes cessaient de pleurer et dansaient ; les hommes s’asseyaient et pleuraient ; les enfants dansaient, les femmes riaient, les enfants pleuraient, jusqu’à ce que, épuisés et rompus, tous jusqu’au dernier gisent dans la Clairière, moites et hors d’haleine. Dans le silence qui s’ensuivait, Baby Suggs, vénérable, leur faisait l’offrande de son coeur immense (MORRISON, 2009 : 126).

Non seulement au «son grand coeur » et dans le discours de Baby Suggs, le corps noir occupe un espace privilégié. Il est une récurrence constante dans les textes des écrivains afro-descendants, critiques et créatifs. Hall (2003) met en valeur la centralité du corps dans les cultures afro-descendantes, en nous exhortant : « pensez à la façon dont ces cultures ont utilisé le corps comme s’il était, et il l’était souvent, la seule capitale culturelle que nous avions. Nous avons travaillé sur nous-mêmes comme les toiles de représentation » (HALL, 2003 : 342). Un de mes poèmes, avec humour, insiste sur la corporéité noire que le raprochement entre hameçon et appât suggère. « Le corps », j’écris, « est là où je vis, du lever au coucher du soleil. Je suis l’appât. Il est mon hameçon » (MARTINS, 1992 : 11). Comme « écrans de représentation » de Hall ou comme appât à l’hameçon de mes lignes, le corps noir qui se dégage de l’exhortation de Baby Suggs accompagne mes études universitaires pendant des années. Dans un essai de 1999, je me penche sur son discours pour analyser la mobilité du ciorps noir. J’explique que

Le discours de Baby Suggs est un message qui aborde l'amour-propre, le respect de soi-même et la compréhension de soi-même. La cible est le corps noir et a deux aspects: d'une part, l'amour de l’ancien esclave du son propre corps et, de l'autre, la haine du propriétaire de l'esclave du corps noir. Baby Suggs sépare le corps libre de l'ancien esclave du corps de l'esclave toujours réduit en esclavage. Ce faisant, Baby Suggs indique clairement que son souci du corps noir est une tentative de l’essencialiser de sorte que son essence est rétablie, une essence qui a été détruite par l'esclavage (MARTINS, 1999 : 16).

Des années plus tard, je reprends la même prédication afin de re-signifier la corporéité afro-américaine. Je retire d’élle un mode de vie pour Pecola Breedlove, une fillette noire, qui, dans les années 1940, veut avoir un corps blanc et les yeux bleus. Ma position est que la jeune fille n'aurait pas succombé au poids de la blancheur hégémonique si elle dansait, chantait, et pleurait en compagnie des enfants, des hommes et des femmes du groupe festif de Baby Suggs. Alors, je demande :

L'expérience de l'amour noir de Baby Suggs pourrait-elle travailler comme une alternative à l'absence d'amour chez Pecola Breedlove? Absolument. D'abord, parce Baby Suggs était le leader du groupe, gardait des contacts permanents avec les membres et travaillait d'une manière qui créait des liens de solidarité entre eux. À Pecola il manque tout cela. Après, parce que Baby Suggs insistait que les battements du cœur noir avaient besoin d'affirmation. Cela manquait aussi à Pecola Breedlove (Martins, 2006: 298-299).

Je reviens maintenant au même sermon de Baby Suggs pour mettre ensemble la race, la littérature comparée et la traduction. J’associe race au nationalisme noir en raison des aspects essentialistes que le corps noir assume dans les mots de la prédicatrice. Les mots de Baby Suggs essentialisent le corps, la noiceur et l’expérience noire, en opposant la noiceur à la brancheur. Dans le sermon, la blancheur est caractérisée négativement, alors que la négritude est vue d'une manière positive. Le nationalisme noir essentialiste est confirmé par la prédicatrice: «Ces blancs-là ont pris tout ce que j'avais ou rêvais d’avoir, disait-elle, et aussi, ils m’ont cassé les cordes du coeur. La seule malchance dans ce monde, c’est les blancs » (Morrison, 2009: 128).
J’illustre mon appréciation de l’essentialisme nationaliste noir en utilisant le concept de la négritude, la métaphore de Caliban, la figure de Malcolm X, et les idées de West (1993) et de Du Bois (1986). Ces personnes donnent à ma proposition comparative un aspect pertinent à la fois ethnique et théorique. Je crois que seule une attitude indépendante et séparatiste pourrait leur suggérer, dans les premiers moments de leur vie libre, la construction d'une identité afro-américaine détachée de la réalité blanche et de l’esclavage noire. C'est cette vision de l'auto-affirmation ethnique qui commande l'application des «aspects positifs» (Martins, 2003: 15) de la négritude à l'expérience de la restauration physique de ces anciens esclaves. Les paroles de Baby Suggs sont claires: l'amour du corps noir est la source de la réinvention de de la corporéité noire autonome : "- Ici – disait-elle, là où nous résidons, nous sommes chair ; chair qui pleure et rit ; chair qui danse pieds nus sur l’herbe. Aimez tout cela. Aimez-le fort. Là-bas, dans le pays, ils n’aiment pas votre chair. Ils la méprisent » (MORRISON, 2009: 127).
L'auto-affirmation et la résistance de l'ancien esclave, présentes dans les mots d’exhortation de Baby Suggs, sont récurrentes dans les attitudes des sujets esclaves des autres textes littéraires. Par exemple, dans La Tempête de Shakespeare (1999), Caliban protagonise une attitude pareille. Esclave de Prospero, Caliban résiste à la puissance hégémonique de l’européen, avec des mots clairs:

Maintenant, je sais parler, et mon avantage
Est d’être capable de jurer. Que la peste vous prenne
Pour m’avoir enseigné votre langue"(Shakespeare, 1999: 36).

La négritude nationaliste est également présente dans la « conversion psychique » des afro-descendants. West (1994) précise que, pour Malcolm X, «la conversion psych suggère que les noirs ne doivent plus se voir à travers des lentilles blanches. Il pretend que la population noire ne se valorisera pas tant qu’elle suit les standards de valorisation qui la dévalorisent» (WEST, 1994 : p. 114). Des standards blancs, bien sûr. Cone (2007) rassemble les termes négritude, Caliban et conversion psychique dans l’attitude nationaliste et séparatiste des leaders afro-américains. Il explicite que (1) «les 244 années d'esclavage, suivies par la ségrégation légale, la dégradation sociale, l’affaiblissement politique et l’exploitation économique signifient que les Noirs ne seront jamais reconnus comme des êtres humains dans la société blanche ; " (2) que « les noirs doivent se séparer de l'Amérique, revenant vers l'Afrique ou allant ailleurs, pour y créer d’autres structures socio-politiques qui proviennent de sa propre histoire et culture» (CONE , 2007: 4). Malgré la forte présence dans la vie et la littérature afro-américaines, le nationalisme noir peut être mis en question par des questions posées par Du Bois (1986) : "après tout, je suis quoi ? Suis-je un Américain, ou suis-je un noir? Puis-je être les deux? "(DU BOIS, 1986: 821). Le même nationalisme peut également être questionné par la réponse de West (1993) aux questions posées par Du Bois: «l’avenir de l’intellectuel noir ne réside ni dans une disposition de déférence envers le père de l’Ouest, ni dans une quête nostalgique du père Africain. Au contraire, il réside dans une négation critique, dans une préservation soignée et une transformation insurgée de cette lignée noire qui protège la terre et projette une vie meilleure » (WEST, 1993 : p. 85). Bien que limité par l'essentialisme noir qu’il detient en soi-même, séparant les anciens esclaves des propriétaires d'esclaves, le sermon de Baby Suggs semble être la seule alternative possible à l'ancien esclave au moment historique de son expérience.
L’essentialisme physique, enveloppé dans le nationalisme noir qui met l'accent sur la positivité de l'ancien esclave et sur la négativité du maître esclave, parcourt les deux traductions de Beloved comme Amada. L'acte comparatif à partir de la perspective séparatiste me permet de regarder les traductions comme des réécritures autonomes du même texte source. Quelle est la pertinence de la réécriture et quelle est son importance pour la littérature comparée? Guyard (1994) définit la littérature comparée comme «l'histoire des relations littéraires internationales» (Guyard, 1994: 97), ce qui suggère que dans les «relations littéraires» entre les pays de différentes langues, la réécriture traductoire joue un rôle prépondérant «parce que, souvent, les oeuvres étrangères ont été connues et lues, même par les écrivains professionnels [mais aussi le lecteur commun] seulement en traduction » (GUYARD, 1994 : p. 98). La littérature comparée et la traduction se complètent, comme Lefevere (2007) reconnait, quand il souligne l'étude de la réécriture. La réécriture, dit l'auteur, «est une manière d’amener à l'étude de la littérature un peu de la pertinence sociale que les études littéraires, comme un tout, ont perdu» (LEFEVERE, 2007, p. 24). Comme exemple de réécriture, autre la traduction, l'auteur inclut également l'anthologie, la critique, l'édition et l'historiographie. Toutes, bien sûr, des manipulations de l’original, avec des intérêts spécifiques. Je me concentre sur la traduction, qui est ce qui importe à ce texte. Lefevere explique que

La traduction est, bien entendu, une réécriture d'un texte original. Chaque réécriture, quelle que soit son intention, reflète une certaine idéologie et une poétique et, comme tel, elle manipule la littérature pour qu'elle fonctionne dans une société donnée et d'une manière spécifique. Réecriture est manipulation, réalisée au service du pouvoir, et dans son aspect positif elle peut aider le développement d’une littérature et d’une société (Lefevere, 2007: 11).

Dans les commentaires sur les deux réécritures du roman Beloved comme Amada je ne veux pas discuter quelle est la meilleure traduction, ni dire si une réécriture d’étrangeté vaut mieux qu'une réécriture de domestication. Je ne vais pas non plus rassembler les deux traductions avec le texte source. Les Amadas de Massaro et Siqueira sont des réécritures autonomes dans leurs décisions idéologiques et poetologiques et, c’est ainsi que je souhaite les considérer dans la présente proposition comparative. Je préfère suivre les paroles de Lefevere quand il dit que "des réécrivains adaptent, manipulent dans une certaine mesure les originaux sur lesquels ils travaillent, généralement en fonction d’un courant, ou d’un courrant idéologique ou poétologique dominant de son temps» (Lefevere, 2007: 23). Concernant l'adéquation d’un texte source à l'idéologie ou à la poétologie d'un temps spécifique, on peut penser, dans les dernières décennies, sur une idéologie (comment un texte afro-descendant se positionne par rapport aux choses) ou sur une poétologie (comment un texte afro-descendant se construit littéralement) qui se manifestent dans de nombreux secteurs de la vie nationale. Nous pouvons citer, comme manifestations de cet environnement idéologique / poétologique racial, la loi 10.639, la construction de l'université afro-brésilienne, le jour férié du 20 Novembre comme un hommage à Zumbi dos Palmares et à la Conscience noire, mais nous pouvons également envisager la production littéraire et critique des auteurs comme Abdias do Nascimento, Paulo Lins, Conceição Evaristo et d’autres.
La réécriture des traductions de Siqueira et Massaro explicite le nationalisme essentialiste noir. Dans le discours de Baby Suggs résonnent les mots de Caliban, de Malcolm X et de nombreux afro-américains qui croient en la séparation entre Noirs et Blancs. Ces mots se répercutent à travers l'affirmation d'une identité corporelle. La ressemblance entre les deux textes traduits se manifeste dans le mot "chair" comme le sens de corps. Pour les deux reécrivains l’affirmation d’une corporéité essentialiste noire apparaît dans une phrase qui est répétée par les deux: «nous sommes chair." Cette chair a la mobilité autant dans la traduction de Massaro que dans celle de Siqueira, une mobilité qui leur permettra de relier des émotions et des actions, exprimées par des phrases telles que «chair qui pleure et rit ; chair qui danse.» De même, les traducteurs sont d'accord que cette chair, ce corps, ont besoin non seulement d’amour, mais de beaucoup d'amour, besoin qu’on voit dans l’impératif verbal: « Aimez tout cela. Aimez-le fort. » Cette chair-corps essentialisée est construite en opposition à un autre corps-chair dont la fonction est de la brutaliser. Massaro et Siqueira ne sont différents en presque rien dans la façon dont ils font l'opposition, puisque la phrase qui les unit est « Là-bas, dans le pays, ils n’aiment pas votre chair. Ils la méprisent.»
Considérant l’image que les deux réécritures projettent de cette chair-corps noire on peut récupérer les mots de Hall (2003), pour qui le corps-chair n’est pas seulement «le seul capital culturel » à la disposition de l’ancien esclave qui ressort des deux traductions, mais elle est également utilisée par le noir qui la porte sur son dos 24 heures par jour, comme «des toiles de représentation » sur lesquelles «nous avons travaillé comme sur nous-mêmes » (Hall, 2003: 342). Ces mots indiquent clairement que c’est le noir qui se représente dans son propre corps. Ainsi, Hall estime que « ce sont les acteurs sociaux qui utilisent les systèmes conceptuels de leur culture, les systèmes linguistiques et d’autres systèmes de représentation pour construire du sens aafin de rendre le monde plus significatif et pour se communiquer sur ce monde d’une manière significative avec les autres » ( HALL, 2003 : 25).
Le discours de Baby Suggs est un exemple de représentation que l'homme noir fait sur lui-même. La représentation noire qui sort des deux traductions transforme le corps noir en une « toile » d'identité sur laquelle on voit un travail en cours, réécrit de manière créative à la fois par Massaro et par Siqueira. J'ai déjà souligné les ressemblances entre les deux réécritures, mais on doit aussi attirer l'attention du lecteur sur une différence de plus: la présence des adjectifs possessifs «nossa» et «sua» du portuguais brésilien, que les traducteurs utilisent pour se référer à la chair-corps noire. Mon analyse ne s'arrête pas sur les raisons de ces choix lexicaux, mais essaie d'obtenir l'effet qu'ils peuvent causer. Je pense que pendant que l'emploi du possessif «nossa» utilisé par Massaro inclut Baby Suggs comme le membre de la communauté qui aime aussi la chair qui est négligée, le possessif «sua» de Siqueira exclut de la communauté la propre prédicatrice. Le possessif «sua» (une hommes, femmes et enfants) dans cette réécriture Smith vous permet de lire le ton professoral de l'orateur comme une suggestion que Baby Suggs nous enseigne sur le nationalisme noir, mais n'est pas partie. Le "notre" de produirait l'effet d'appartenance de l'oratrice.
Cette différence entre les deux traductions nous rapproche d'une notion plus concrète de la mobilité textuelle de Moretti et la mobilité identitaire de Hall (2006). Pour Moretti la mobilité interlittéraire se présente sous forme de vagues, faisant l'intérêt pour la «littérature nationale» communier avec « l'étude de la littérature mondiale. » Il explique que « en méprisant les obstacles » les vagues « se développent dans une continuité géographique » provoquant, ainsi, un «travail cosmique et inévitable» (MORETTI, 2000: 66-67). Avec la métaphore des vagues, je pense au mouvement entre la réécriture de Massaro et celle de Siqueira. En outre, avec Hall Je veux examiner le mouvement du corps noir qui, à chaque fois, se déplace entre de nouvelles identités. Compte tenu de cette identité de flux, Hall suggère que « l'identité devient une ‘célébration mobile: formée et transformée en permanence par rapport aux manières par lesquelles nous sommes représentés ou questionnés dans les systèmes culturels qui nous entourent » (HALL, 2006: 13). On représente le terme «célébration mobile" avec le rire des enfants, la danse des hommes et les pleurs des mères. Sur la toile de représentation qui devient le corps de l'ancien esclave, utilisant la métaphore de Hall, le discours de Baby Suggs décrit un mouvement de l'extérieur vers l'intérieur du corps. Extérieurement, le discours de l’Ancienne met l'accent sur les yeux, le dos, les mains, le visage, les pieds, les épaules, le cou et la bouche de l’ancien esclave ; intérieurement , l'accent est mis sur le foie, les poumons, l'estomac, l'utérus et le cœur. Dans les deux extrêmes on trouve toujours deux attitudes opposées envers le corps des anciens esclaves : celle de le préserver et celle de le détruire. Baby Suggs demande aux noirs mêmes de préserver le corps noir qu’ils ont, en expliquant que la préservation physique est nécessaire car il y a toujours la menace que quelqu'un va le détruire. Aussi bien dans le texte de Massaro que dans celui de Siqueira, la préservation physique est toujours un acte d’amour constant, et elle peut se résumer en une phrase impérative : «aimez » [vos/leurs], yeux, dos, mains, visage, bouche, pieds, épaules, gorge, foie, poumons, estomac, utérus et cœur. Des actes de préservation sont également considérés, comme le suggèrent les verbes coucher, danser, soutenir, plaire, caresser et dresser utilisés par l'oratrice. La destruction physique semble plus variée dans les verbes qui suggèrent le démontage : mépriser, arracher, fouetter, faire tomber le fouet, utiliser, attacher, saisir, couper, haïr, détester et casser. Massaro et Siqueira s’accordent également sur un autre type d’opposition. Dans les deux réécritures de Beloved comme Amada, l'opposition entre préserver et détruire se soutient également sur une autre opposition de lieu entre «ici» et «là-bas.» «Ici » c’est l’endroit de la préservation physique, communautaire et de groupe; « là-bas » c’est celui de la destruction dévastatrice. Autrement dit, «ici» est le lieu de l'amour-propre et de l’auto-caresse, physiques ; « là-bas » devient le lieu de la mort. «Là-bas » est la ferme où les anciens esclaves ont vécu et, ironiquement, est appelée Bon Abri.
Il aide à penser la réécriture ou la traduction littéraire comme un polysystème. Even-Zohar (1990) soutient que, comme polysystème, la traduction littéraire a deux comportements: (1) elle est un moyen de sélectionner les textes à traduire, ce qui appartient au système de la littérature cible ; (2) elle est aussi un moyen de l'adoption de normes, des comportements et des politiques, resultant de l'interaction avec les systèmes d'autres littératures cible. Comme informe Even-Zohar, « dire que la littérature traduite occupe une position centrale dans le polysystème littéraire signifie qu'elle participe activement à la définition du centre de polysystème » (Even-Zohar, 1990: 46). Dans le cadre du polysystème traductoire, les réécritures produites par Massaro et Siqueira présentent des différences, en plus des similitudes mentionnées ci-dessus. Indépendamment de la différence entre l'utilisation du possessif «nossa/notre» [par Massaro] et «sua/sa» [par Siqueira], ce qui inclurait l’oratrice dans les, ou l’exclurait des, vicissitudes existentielles de l'ancien esclave, les différences entre les deux réécrivains concernent l’organisation textuelle des oppositions entre la préservation du corps des anciens esclaves et sa destruction. Dans le domaine de la préservation, alors que Massaro préfère le verbe «acariciar/caresser» pour désigner le type de soin amoureux que l'ancien esclave doit à son propre visage, comme dans la phrase 'expression «caressez-vous-en le visage,» Siqueira utilise le mot «esfregar/frotter» dans l'expression «frottez-vous-en le visage. » L'effet est que, bien que la légèreté de «caresser» contraste avec la dureté de «frotter,» les deux traductions cherchent à souligner le dévouement au propre corps noir que Baby Suggs espère de l'ancien esclave. Dans l'action de «caresser» ou de «frotter» est également suggérée l’attention aux mains, car c'est avec elles que l'ancien esclave exprime son attachement à son visage, le caressant et ou le frottant. La même distinction entre une verbalisation dirigée à l'émotion par Massaro et une autre envers l’effort, encouragé par Siqueira, on la retrouve lorsqu’on compare deux phrases qui se réfèrent au cou de l’ancien esclave. MASSARO: «posez la main dessus, honorez-le, caressez-le ; SIQUEIRA : «posez la main dessus, honorez-le, frottez-le et tenez-le droit. » Les formes verbales « caressez-le » et « tenez-le droit » donnent au corps de l’ancien esclave le soin et, bien que même implicitement présentes dans le texte de Massaro, Siqueira préfère les préciser et les étendre. Vous pouvez créditer la présence du mot «droit» à la phrase « ils n’aiment pas votre cou dressé bien droit et sans licol » qui est dans la réécriture de Siqueira, mais qui est absent de la réécriture de Massaro. L'expression "sans licol » peut signifier sans les anneaux de fer que les propriétaires d'esclaves utilisent pour soumettre, humilier et rabaisser l'African au niveau de bête, d’animal. Employé Ironiquement, le terme «licol» déclenche un effet dévastateur sur l'ancien esclave qui entend la parole de Baby Suggs.
La bouche est un terme situé entre l'extérieur et l’intérieur du corps de l'ancien esclave. Dans la réécriture de Siqueira ainsi que dans celle de Massaro il y a des références similaires à ce qui pénètre dans le corps et à ce qui en sort à travers la bouche : d’abord, c'est la nourriture qui nourrit et est, ensuite, dépouillée ; après, c’est le cri qui sort, mais qui n’est pas entendu. Ici, les effets souhaités par Massaro et Siqueira se sont éloignés de nouveau, légèrement, par l’utilisation des expressions comme «ils ne prêteront pas attention » [Massaro] et «ils ne les entendront pas » [Siqueira]. L’expression « prêter attention » semble plus axée sur la généralisation des soins; mais « entendre » est liée à un sens précis – l'audience. Une autre différence entre les deux écrivains se réfère à une partie du discours de Baby Sugss, évoquée par Siqueira : « et toutes vos parties intérieures qui’ils donneraient volontiers en pâté aux cochons, vous devez les aimer. » Avec elle, Siqueira prépare le lecteur à ce que le discours de Baby Suggs mentionne dans la partie intérieure du corps de l'ancien esclave. Et à ce type d'amour que l’ancien esclave doit consacrer au corps, même s’il [et surtout pour qu’il] devient la nourriture pour les cochons. Lorsqu'ils sont engagés dans la réécriture de ces pièces internes [le foie, les poumons, l’estomac, l’utérus, les organes génitaux, le coeur] les deux écrivains semblent d'accord, et ils soulignent, tout aussi clairement, les recommandations de Baby Suggs aux anciens esclaves réunis pour l'entendre. Massaro et Siqueira se mettent en syntonie traductoire sur l'importance que la vieille prédicatrice dédie au coeur noir. Pour l'oratrice et pour les réécrivains l'ancien esclave doit aimer son coeur «car c’est votre trésor.» Cette référence au cœur comme « trésor » ferme le discours de Baby Suggs, mais il serait intéressant de considérer la phrase complète qui compare la primeur du coeur par rapport à d'autres organes internes du corps de l'ancien esclave: «davantage que les yeux et les pieds. Plus que les poumons qui doivent continuer à respirer de l’air libre. Plus que votre matrice qui abrite [Massaro : «le ventre qui abrite »] la vie, et ses parties donatrices de [Massaro : «les parties intimes qui font »] la vie, écoutez-moi bien, aimez votre coeur. Car c’est votre trésor » (MORRISON, 2009 : 128).
Mes derniers mots sont que, dans ce texte, j'ai cherché à établir des relations entre littérature comparée, traduction et race, considérant les aspects de mobilité que les thermes suggèrent. En fonction du texte choisi pour l'analyse, l'accent a été mis sur la mobilité raciale du corps de l’ancien esclave que le discours de Baby Suggs a exposé au public qui l’écoutait. Ainsi, j'ai inclus mon étude dans le domaine du post-colonialisme, en rapprochant race, traduction et les relations asymètriques de pouvoir entre l’ancien esclave et les propriétaires d'esclaves. Mon analyse comparative des deux traductions a placé côte à côte la littérature comparée et la réécriture. La métaphore de Hall qui voit le corps noir comme « une toile de représentation » sur laquelle le noir lui-même travaille a introduit le débat sur la question de l'identité, ainsi que sur la mobilité. J’ai precisé dans les réécritures de Massaro et de Siqueira la mobilité physique-spatiale du corps de l'ancien esclave entre «ici» - la communauté noire qui entend le sermon de Baby Suggs - et «dans le pays" - la ferme Bom Abri d’où l'esclave a échappé; dans les mêmes réécritures, j’ai fait aussi des considérations sur une autre mobilité, la corporelle seulement, un mouvement des parties extérieures du corps envers les internes ; et, enfin, j’en ai mentionné une troisième, identitaire: entre la préservation et la destruction physique, c'est-à-dire, entre la restauration du corps par l'ancien esclave et sa destruction par le propriétaire d'esclave. J'ai considéré les façons différentes et semblables avec lesquelles les deux réécrivains travaillent sur le discours de Baby Suggs, en suggérant qu’ils s’appuient sur les effets sémantiques causés par des choix lexicaux et grammaticaux plus que sur leurs propres choix.
West (1994) découvre dans le roman Beloved, et en particulier, dans le discours de Baby Suggs, un parler qui «joint l'affirmation amoureuse et en même temps la critique de l'humanité du peuple noir, rencontrée dans les aspects les plus louable des mouvements nationalistes noirs » (Ouest, 1994: 36). Les réécritures de Massaro et Siqueira ne s‘éloignent pas de ce point de vue. Avec des variations mineures, les deux réécrivains réaffirment «l'humanité du peuple noir» présent dans les paroles de Baby Suggs. Ainsi, ce que Baby Suggs fait, à travers sa prédication collective est donner une physicalité à ce que West appelle la politique de la conversion, qui est fondée sur une éthique de l'amour. "L'éthique de l'amour », dit-il, «n'a aucun lien avec les sentiments de compassion ou avec les connections tribales. Elle est la dernière tentative de susciter chez les peuples opprimés le sentiment qu'ils sont capables d'influencer » (West, 1994: 35).

Reférences

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AMOR E IDENTIDADES FEMININAS DE GÊNERO E RAÇA NA LITERATURA AFRO-AMERICANA DE MULHERES

POR
JOSÉ ENDOENÇA MARTINS
RENATA NERIS RODRIGUES

RESUMO
O estudo analisa as aproximações entre amor e identidades de gênero e raça de três mulheres negras: Janie Crawford, Pecola Breedlove e Celie Jackson, personagens centrais dos romances Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neal Hurston (2002), O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (2003) e A Cor Púrpura, de Alice Walker (1986). Jane Flax (1995) esclarece que “raça, gênero, localização geográfica, identidade sexual, idade, condição física e classe contribuem em múltiplos e contraditórios modos na constituição da subjetividade da mulher e nos significados e n natureza de suas práticas” (FLAX, 1995, p. 859). Nos limites de raça e gênero, Janie alia identidade à busca do amor romântico nos casamentos com Logan Killicks, Joe Starks e Tea Cake. O amor surge com o último marido. Pecola associa identidade à procura do auto-amor na amizade com a família McTeer, as prostitutas, e o curandeiro Soaphead Church. A menina não é capaz de construir estabilidade emocional porque a faz depender da posse de olhos azuis. Como seus azuis são um desejo, nunca uma realidade ela não é capaz de desenvolver auto-amor. Finalmente, Celie relaciona sua identidade à experiência do amor homoerótico, na companhia da irmã Nettie, a nora Sofia e a amante Docí. Com Doçi ela encontra amor e inicia uma nova visão de Deus.
Palavras-Chave: Identidade, Amor, Auto-Amor, Amor Homoerótico.


Introdução

Neste artigo, fazemos discussão dos resultados alcançados pelo projeto de pesquisa Identidades Femininas de Gênero e Raça na Literatura Afro-Americana de Mulheres. O foco do nosso texto recai nas formas como três mulheres – Janie Crawford, Pecola Breedlove e Celie Jackson – constroem identidades a partir das experiências que vivem nos romances Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neale Hurston (1937), O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (1970) e A Cor Púpura,de Alice Walker (1982)
Objetivamos examinar, nesta análise, a experiência de dialogismo que acreditamos existir entre os romances. Quando se trata de textos de autoras negras, Gates (1988) sugere que o dialogismo deve receber o nome de significação. Para ele, significação é o processo através do qual “um (texto) significa sobre o outro, por meio de revisão e repetição, e diferença tropológicas” (GATES, 1988, p. 88). O autor enfatiza que a significação é uma forma de intertextualidade, e permite que “textos negros falem com outros textos negros” (GATES, 1988, p. xxvi). Vamos mostrar como o dialogismo negro aproxima as categorias de gênero e raça ao estabelecer relações dialógicas entre o modo como Janie, Pecola e Celie constroem identidades. Amittai F. Aviram (1995) argumenta que “pensa-se gênero como algo que a sociedade constrói,” e que, por isso, “este construcionismo implica em que os traços ‘masculinos’ e ‘femininos’ não sejam tomados como expressões de uma essência natural, universal, eterna de homens e mulheres. Antes são ficções convencionalmente aceitas, como o Papai Noel.” (AVIRAM, 1995, p. 342). E quando discute raça, Brown (1995) nos ensina que raça também é “um construto cultural,” nunca “um instrumento natural de classificação” (BROWN, 1995, p. 731). Brown explica que raça é “uma construção ideológica e histórica” (BROWN, 1995, p. 731). E sugere que “tanto os fatores envolvidos na construção de raça como as sutis relações de poder devem ser expostas” (BROWN, 1995, p. 731).
A metodologia apresenta três momentos. Inicialmente, discutiremos as relações entre identidade e amor nas experiências que Janie Crawford vivencia no romance Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neale Hurston (2002). Enfatizaremos que a personagem estabelece sua identidade em sua incansável busca do amor romântico. Num segundo momento, apresentaremos as aproximações entre identidade e auto-amor nas experiências que Pecola Breedlove desenvolve no romance O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (2003). Insistiremos em que seu desejo de reafirmar auto-amor, infelizmente, não subsiste. Por fim, estudaremos as relações entre identidade e amor homoerótico nas vivências de Celie Jackson, no romance A Cor Púrpura, Alice Walker (1986). Afirmaremos que o amor homoerótico dará à personagem a autonomia e a independência que ela tanto almeja.

1. Janie, Amor e Identidade

No romance Seus Olhos Viam Deus, a jovem negra Janie constrói subjetividade autônoma durante a busca do amor romântico. Em sua insistência no amor, a jovem une gênero e raça. Jane Flax (1995) afirma que “raça, gênero, localização geográfica, identidade sexual, idade, condição física e classe contribuem em múltiplos e contraditórios modos na constituição da subjetividade da mulher e nos significados e na natureza de suas práticas” (FLAX, 1995, p. 859). Ao longo da análise, vamos perceber como subjetividade e amor perpassam as relações de gênero e raça da personagem. Jane é vista a partir das experiências amorosas e dos casamentos com três homens totalmente diferentes: Logan Killicks, Joe Stark e Tea Cake. Estes casamentos permitem que Janie consiga avançar da esperança no amor à concreta experiência do sentimento amoroso.
Por decisão da avó Babá, o primeiro casamento de Janie acontece com Logan Killicks. Ainda não se trata da busca do amor romântico, mas pode ser visto como a primeira tentativa amorosa da personagem. Killicks não é o príncipe encantado, mas tem o que a avó enxerga como essencial num casamento. Ele é sinônimo de segurança para a sua neta. Para a avó, o futuro marido de Janie “é um homem de bem” (HURSTON, 2002, p. 30). E tem bens próprios: “uma casa comprada e paga, e vinte e quatro hectare de terra” (HURSTON, 2002, p. 39). Para a avó a segurança financeira da neta é fator decisivo no casamento. Para a neta, porém, amor é aspecto mais importante que dinheiro. Janie só aceita casar-se com Logan, como ela própria diz, “para esperar o começo do amor” (HURSTON, 2002, p. 38).
Durante anos, ela trabalha na fazendo do marido e espera o amor romântico chegar, mas o amor – aquele sentimento forte que ela experimenta anos antes, debaixo da pereira com o primeiro namorado – não vem. Quem entra em sua vida é Joe Starks, o segundo pretendente. Diferente do marido agricultor e rude, Joe é articulado e fala bem. Ele a convence a deixar o marido e a partir com ele. Janie o aceita, acreditando, mais uma vez, na possibilidade do amor. A esperança no amor com Joe está presente na metáfora da autora: Janie “sabia que Deus rasgava o mundo velho toda noite e construía um novo ao nascer do sol” (HURSTON, 2002, p. 41). Ela acredita que Joe pode ser a saída para a sua infelicidade conjugal.
Com Joe, o segundo casamento de Janie é a segunda busca do amor. Ela crê que Joe pode ser “um novo (mundo) ao nascer do sol” (HURSTON, 2002, p.41) em sua vida e se deixa levar com ele. Os dois criam uma nova comunidade e ele se torna uma autoridade entre as pessoas. Tem posses, prestígio e poder. A companhia de Joe é instigante. Ele a trata bem e a valoriza. Ele representa “o nascer do sol, pólen e árvores em flor (...) o horizonte distante (...) mudança e oportunidade” (HURSTON, 2002, p. 46). Com o tempo, apesar da possibilidade de mudança que a presença de Joe traz para a vida da moça, nem tudo é felicidade ou auto-estima. O problema está em que Joe vê a esposa como objeto. E acredita que ela “foi feita para ficar sentada na varanda da frente, balançando numa cadeira de balanço e se abanando, e comendo as batata que os outros planta só pra tu” (HURSTON, 2002, p. 60). Como no primeiro casamento com Logan, Janie tem casa, bens e segurança, mas não tem o tipo de amor que deseja encontrar. Ela chega à conclusão de que com o marido Joe, “a vida num é nada mais que uma loja e uma casa” (HURSTON, 2002, p.91). A Necessidade de romantismo que sente lhe diz que o que tem com Joe é muito pouco. Sem amor, uma casa e uma loja, tudo isso é muito pouco para ela. O desfecho do relacionamento é trágico. A narradora conta que Janie enfrenta o marido diante de outras pessoas e o ofende gravemente. Ela rouba-lhe “a ilusão de irresistível virilidade que todo homem alimenta” (HURSTON, 2002, p.94). A acusação de impotência sexual leva Joe ao silêncio, recolhimento, doença e morte. A viuvez e a herança que herda mudam a vida da mulher. Sozinha, independente, autônoma e rica, Janie se transforma em outra mulher. Como ela própria diz, a “menina se fora, mas uma mulher bonita tomara o seu lugar” (HURSTON, 2002, p.103).
Com Tea Cake acontece o terceiro casamento. Com ele, chega o verdadeiro amor para esta mulher bonita em que Janie se transforma. Diferente de Logan, que a obriga a trabalhar no campo, e, também, de Joe, que a trata como um objeto de estimação, Tea Cake traz-lhe a possibilidade da liberdade e da autonomia emocionais. Ela pode mostrar-lhe quem ela realmente é. Pode, também, expressar-se como bem entende. Essa sensação de liberdade e de sentir-se amada torna-a jovem, disposta e feliz. Tea Cake também é feliz e se alegra com a esposa. “É sempre uma menininha. Deus deu um jeito de tu gastar a velhice primeiro com outro, e poupar os dias de menina pra gastar comigo” (HURSTON, 2002, p. 197), Tea Cake comenta. Neste clima de liberdade e amor em que Janie e Tea vivem, ela fala do amor que encontra e sente: “é que nem o oceano. É uma coisa que se move, mas mesmo assim toma a forma da praia que encontra, e é diferente em toda praia” (HURSTON, 2002, p. 208).

2. Pecola, Auto-Amor e Identidade

Se Gates (1988) tem razão quando afirma que a significação permite que “textos negros falem com outros textos negros” (GATES, 1988, p. xxvi), então pode-se perceber um tipo de dialogismo que se estabelece entre o amor que Janie realiza e o que Pecola procura. Diferente de Janie que encontra o amor romântico e o vive intensamente com o marido Tea Cake, Pecola corre atrás do auto-amor. Ela acredita que o auto-amor é o primeiro passo na direção do amor dos outros. Sua subjetividade e identidade surgem associadas à auto-afirmação. Alexander (1997) esclarece que “identidade pode ser definida como a busca do ser e suas relações com contextos e realidades sociais” (ALEXANDER, 1997, p. 379). Para Hurston (2002) a idéia de identidade se associa a “crenças e valores culturais e socialmente construídos” (ALEXANDER, 1997, p. 381). O auto-amor da menina Pecola desenvolve-se nos seus contatos com outras mulheres, as irmãs McTeer e as prostitutas, e com os olhos azuis que ela acha que possui.
O primeiro passo de Pecola na direção do auto-amor acontece na companhia das irmãs Cláudia e Frieda McTeer. A convivência com as meninas McTeer é fundamental para Pecola. É a partir das conversas que tem com as irmãs que a personagem entra em contato com valores culturais negros: família estruturada, casamento estável, solidariedade, companheirismo e cultura. Ela tem a sua disposição “crenças e valores culturais” negros, como sugere Alexander (1997). A dedicação da Senhora MacTeer à família e a proteção do Senhor McTeer às filhas quando estas são ameaçadas em sua integridade moral são alguns exemplos do tipo de família que Frieda e Claudia colocam à disposição de Pecola. Porém, Pecola parece incapaz de perceber este ambiente como propício para as suas necessidade de amor e auto-amor. Ela é incapaz de construir auto-estima no contato com os valores negros da família McTeer.
Ela vai, então, desenvolver auto-estima em relação a alguns objetos que realçam os valores brancos. Um desses objetos é a xícara com a figura de Shirley Temple, a artista branca do cinema. A narradora conta que Pecola “gostava da xícara com a Shirley Temple e aproveitava toda oportunidade para tomar leite nela, só para a segurar e ver o rosto meigo da Shirley” (MORRISON, 2003, p. 27). Shirley Temple é um símbolo branco. Loura e bonita, a artista tem olhos azuis. Pecola vê na artista o ideal de beleza que ela almeja para si. E que pode torná-la amada. O desejo de integrar-se à comunidade e ser aceita toma conta da personagem. Este sentimento a encoraja a buscar beleza e amor. Ela acredita que beleza e amor andam juntos. A convivência com as meninas McTeer enseja a que Pecola experimente momentos de atenção, zelo e proteção. Frieda e Cláudia gostam de Pecola. Fazem agrados, oferecendo-lhe bolachas e leite na xícara com a Shirley Temple. Elas não a censuram quando Pecola fica enternecida “olhando ternamente para a silhueta do rosto com covinhas de Shirley Temple” (MORRISON, 2003, p. 23). Em algumas situações, as irmãs MacTeer protegem Pecola de insultos na escola e na rua. Neste ambiente familiar, sem ser capaz de perceber o amor que recebe da família, Pecola manifesta sua preocupação em ser amada. “Como a gente faz para alguém amar a gente?” (MORRISON, 2002, p.23), ela pergunta às duas irmãs. A partir daí, Pecola passa a desejar ser amada e a crer que o amor a livrará do ambiente adverso em que vive na sua verdadeira família, e mudará sua vida.
Na segunda tentativa na direção do auto-amor, Pecola investe suas energias na amizade com as prostitutas Marie, China e Polaca. Trata-se de uma extensão da amizade que Pecola tem com as irmãs Claudia e Frieda. A amizade com as prostitutas abre uma nova brecha que permite que Pecola sonhe por um curto tempo e imagine o amor. “Pecola gostava muito delas, visitava-as, fazia servicinhos de rua para elas. Elas, em troca, não a desprezavam” (MORRISON, 2003, p. 54), conta a narradora Cláudia. As prostitutas são auto-confiantes, cantam, gostam de comida, de rir e de contar histórias. Elas a tratam bem, protegem-na e se dirigem a ela com nomes carinhosos. Com as prostitutas Pecola aprende novas formas de enxergar e conceber o amor, o auto-amor e a amizade. Essa relação com as prostitutas e suas histórias abre um leque de novos pensamentos a Pecola. Porém, o amor continua a preocupação central dela. Ela ainda define o amor em sua visão infantil e ingênua. Para Pecola, o amor era imaginar “como é que os adultos agem quando se amam” (MORRISON, 2003, p. 61). Ela, então, imagina o pai e a mãe fazendo amor. A mente traz-lhe a imagem

De Cholly e da sra. Breedlove na cama. Ele fazendo ruídos como se sentisse dor, como se alguma coisa o segurasse pela garganta e não soltasse. Terríveis como eram, esses sons não eram tão maus quanto a ausência de som da mãe. Era como se ela nem estivesse lá. Talvez o amor fosse aquilo. Sons estrangulados e silêncio” (MORRISON, 2003, p. 61).

Pecola Breedlove é incapaz de perceber amor ou desenvolver auto-amor onde eles podem ser articulados. Não os percebe na companhia das meninas McTeer, nem entre as prostitutas. Ela, então, vai procurá-los a fora dos valores negros que estas mulheres representam. Busca-os nos valores brancos, representados nos olhos azuis. Aquele desejo que começa quando ela bebe leite na xícara com a imagem de Shirley Temple, na casa dos McTeer, agora se transforma numa obsessão incontrolável. Inicialmente, sua atitude é descartar seus olhos negros. Ela pensa: “eram sempre os olhos que sobravam” (MORRISON, 2003, p. 49) e “por mais que tentasse, nunca conseguia fazer os olhos desaparecerem” (MORRISON, 2003, p. 49), ela pensa diante de espelho. Os olhos negros são a marca da infelicidade que toma conta dela. Deseja entender a feiúra dos olhos. “Passava longas horas sentada diante do espelho, tentando descobrir o segredo da feiúra, a feiúra que a fazia ignorada ou desprezada na escola, tanto pelos professores quanto pelos colegas” (MORRISON, 2003, p. 49), explica a narradora.
A segunda atitude de Pecola é substituir seus olhos negros por olhos azuis. Na sua mente, e na comunidade em que vive, os olhos azuis representam a beleza que a aproximará do mundo gentil e delicado onde a sutileza e o encanto das crianças de pele rosada amenizam qualquer sofrimento. Claudia, a narradora, descreve a obsessão da amiga: “tinha ocorrido a Pecola, havia alguém tempo, que se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente” (MORRISON, 2003, p. 50). Pressionada pelo desejo de possuir olhos azuis, Pecola parte para a ação. Primeiro pede os olhos azuis a Deus: “rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente” (MORRISON, 2003, p.50). Depois, visita o mágico Soaphead Church que a faz acreditar que tem os desejados olhos azuis. Ele deseja ajudá-la porque acredita que seu pedido é instigante e inusitado. Porém, ele a engana e a manda para casa com a certeza de que carrega os sonhados olhos azuis em lugar dos negros.
Mais tarde, em casa, Pecola conversa com os supostos olhos azuis diante do espelho. Ela se sente feliz, olha-se no espelho, e questiona se seus olhos azuis são “realmente, honestamente, azulmente bonitos” (MORRISON, 2003, p.195). E reage: “só porque eu tenho olhos azuis, mais azuis do que os deles, eles ficam com preconceito” (MORRISON, 2003, p. 197) ela diz para si mesma. Para Pecola ter olhos azuis ainda não é tudo, é preciso que sejam “os olhos mais azuis” (MORRISON, 2003, p. 204), como os que ela supõe possuir.

3. Celie, Amor Homoerótico e Identidade

O dialogismo, ou a significação, postulado por Gates (1988) entre textos negros, agora vai somar a busca que Celie vai fazer do amor homoerótico ao amor romântico de Janie e o auto-amor de Pecola. Podem estas buscas negras conversar entre si? A resposta é positiva. Isto porque, em suas extraordinárias experiências, Janie e Pecola desenvolvem identidade de amor e auto-amor. A primeira é feliz, a segunda se frustra. As experiências de Celie procuram uma alternativa às duas primeiras. Aliam identidade a amor homoerótico na companhia das mulheres Nettie, Sofia e Shug Avery. Com elas, Celie busca os interesses do grupo e da comunidade. King (1997) esclarece que Celie “constrói suas identidades através do poder transformador da amizade e do amor das mulheres negras” (KING, 1997, p. 163). King afirma que a identidade de Celie, a personagem central do romance, deriva do amor homoerótico, presente nas “retratos fortes das relações bissexuais, lésbicas e heterossexuais em meio a situações que penetram no âmago do desenvolvimento espiritual e emocional da mulher negra” (KING, 1997, p. 163). Walker (1983) cria um nome para o homoerotismo que ela estabelece entre mulheres negras: womanismo. Para a autora, a womanista, ou seja, a mulher negra que aciona o womanismo,

Ama outras mulheres, sexualmente e/ou não sexualmente. Aprecia e prefere a cultura da mulher, a flexibilidade emocional da mulher (valoriza as lágrimas como um contra-peso natural à risada), e a força da mulher. Às vezes ama homens individualmente, sexualmente e/ou não sexualmente. Compromete-se com a sobrevivência e a completude do seu povo, homens e mulheres” (WALKER, 1983, p.xi).

A primeira manifestação do womanismo de Celie inclui aliança afetiva com a irmã Nettie. A aliança das irmãs representa o amor fraterno. Através do amor, uma protege a outra e, juntas, procuram aprender e amadurecer. Inicialmente, Celie protege Nettie contra o assédio do padrasto. “Vou tomar conta dela. Cum ajuda de Deus” (WALKER, 1986, p. 12), ela esclarece. Em seguida se oferece como objeto das investidas do homem. Pede para ele a “pegar invés da Nettie” (WALKER, 1986, p.17). Celie acredita que a irmã ainda pode casar bem. Com ela é diferente. Ela foi estuprada duas vezes pelo padrasto. “Tem vez que ele inda fica olhando pra Nettie, mas eu sempre atrapalho ele. Agora eu vou dizer pra ela casar cum o Sinhô” (WALKER, 1986, p. 15), Celie explica. Celie deseja que Nettie tente “ter um ano bom na sua vida” (WALKER, 1986, p. 14) e estimula a irmã a casar-se com o pretendente que faz a proposta de casamento ao padrasto. O padrasto, porém, não aceita o pedido, afirmando que “a Nettie o senhor num pode levar. Mesmo. Nem agora, nem nunca” (WALKER, 1986, p. 18).
Na aliança entre as duas irmãs, Nettie também manifesta solidariedade para com Celie. Isto acontece na casa de Celie e do marido Sinhô. Ao ver a forma como a irmã é tratada pelos filhos do marido, Nettie a aconselha a não “deixa[r] eles dominarem você (...) você tem que mostrar para eles quem é que manda. (...) Você tem que brigar” (WALKER, 1986, p.28). Além deste tipo de apoio, Nettie ensina Celie a ler sobre as coisas do mundo. A própria Celie reconhece a iniciativa da irmã: ela “peleja pra ensinar o que tá acontecendo no mundo. Ela é boa professora (...) Todo dia ela lê, ela estuda, ela pratica caligrafia e tenta fazer a gente pensar” (WALKER, 1986, p. 27). Mais tarde, mesmo na Iminência de serem separadas pelo marido de Celie, o apoio entre as duas irmãs não diminui. Nettie se torna missionária na África e de lá, por meio de cartas, insiste que Celie deve continuar sua luta por liberdade. Aconselha a irmã a “lutar e se livrar do Albert. Ele não presta” (WALKER, 1986, p.117). Ensina que “neste mundo tem pessoas pretas que querem que a gente aprenda! Querem que a gente enxergue as coisas com clareza!” (WALKER, 1986, p.122). E Nettie procura despertar na irmã o gosto pelos costumes dos Olinka e a cultura africana. A interação entre as duas irmãs cria a possibilidade de fusão entre a cultura africana e a afro-americana.
O segundo momento do womanismo de Celie se dá na amizade que mantém com Sofia, a nora. O casamento de Sofia com Harpo, enteado de Celie, aproxima as duas mulheres. Sofia e Celie são diferentes. Sofia é forte, autônoma e independente em relação ao marido. Celie é completamente submissa ao marido Albert. Sofia procura mostrar o tipo de pessoa que acha que Celie é. Ela diz à amiga:

Você me lembra minha mãe. Ela ta debaixo do pé do meu pai. Tudo o que ele diz, ela faz. Ela nunca responde. Ela nunca se defende. Às vez tenta defender um pouco as criança, mas ela sempre entra pelo cano. Quando mais ele defende a gente, mais duro ele bate nela (WALKER, 1986, p.46).

Sofia também deseja que Celie perceba o tipo de mulher que ela, Sofia, é. Ela descreve sua luta por autonomia no mundo dos homens: “toda minha vida eu tive que brigar com meus primo e meus tio. Um minina nunca ta sigura numa família de home. Mas eu nunca pensei ter que brigar na minha própria casa” (WALKER, 1986, p.46).
Sofia procura esclarecer Celie a respeito do mundo branco. Ela não vê muita diferença entre os homens negros – marido, tios e primos – e os brancos. “Os branco nunca iscuta os negro, e pronto. Se eles iscuta, eles só iscuta o bastante pra poder dizer procê o que você deve fazer” (WALKER, 1986, p. 176). Sofia sabe que o crescimento emocional da mulher negra passa por as experiências que ela têm com os homens negros e o mundo branco. E sugere que a solidariedade feminina tem que levar este aspecto em consideração. “A gente sabe que não foi a gente que fez este mundo” (WALKER, 1986, p. 236), ela diz à amiga. A lição de Sofia é de força e Celie se fortalece em seu contato com esta amiga. E cresce espiritual e emocionalmente com as palavras e os exemplos de vida de Sofia.
O terceiro aspecto do womanismo de Celie se realiza na relação homoerótica que estabelece com Docí Avery. O esclarecimento de Walker (1983) para este tipo de amizade entre mulheres é a de que a womanista é “uma mulher que ama outras mulheres sexualmente” (WALKER, 1983, p. xi). Celie acaba amando Doci sexualmente depois de algum tempo de convivo. Porém, o amor homoerótico principia pela admiração. Celie fala da beleza de Doci: “a mulher mais linda queu já vi. Ela é mais bunita que minha mamãe. Ela é mais de dez mil vezes mais bunita que eu (...) A noite toda eu fico olhando. E agora quando eu sonho, eu sonho com Docí Avery. Ela ta vistida linda de morrer, rodando e rindo.” (WALKER, 1986, p.15-16). A admiração leva à ajuda mútua. Em casa, Celie toma conta da doença de Doci. Trata-se de dedicação total. Celie deseja ver a amiga curada e não mede esforços para ver Doci melhor. “Eu continuo trabalhando como se ela fosse uma boneca (...) ou como se fosse mamãe. Eu pentio e mimo, pentio e mimo” (WALKER, 1986, p. 56), Celie explicita.
A retribuição de Doci à atenção solidária de Celie é proporcional. Ela ensina Celie a amar-se e amar. A conhecer o próprio corpo, a sorrir e a beijar. Nesta relação de descoberta e auto-descoberta, as duas mulheres se amam, dormem juntas “que nem irmãs” (WALKER, 1986, p.134). E consideram-se “a família uma da outra” (WALKER, 1986, p. 166). Mais tarde, irmanadas no amor, Doci ensina Celie a respeito da concepção que ela tem de deus. Ela explica a Celie que deus “deu a vida pra você, uma boa saúde, e um boa mulher que ama você até a morte” (WALKER, 1986, p. 174). Para Doci o amor mútuo que elas sentem é uma graça divina e elas agradam a deus “cum o que a gente gosta de fazer” (WALKER, 1986, p.175). O ensinamento de Doci continua e ela esclarece que Deus é uma coisa, nem homem, nem mulher, nem negro, nem branco. “Deus ta dentro de você e dentro de todo mundo. (...) E às vezes ela [essa coisa] se manifesta mesmo se você num ta procurando” (WALKER, 1986, p. 177). Ela também procura deixar claro que encontrar a Deus é encontrar a felicidade. “Quando você consegue sentir isso [Essa coisa, Deus], e fica feliz purque ta sentindo isso, então você encontrou” (WALKER, 1986, p. 177), ela explica.
Celie aprende a valorizar a vida, a amar-se e a amar. Agora, ela sente amor por si mesma, ama Docí e ama deus. Celie dá valor a deus e o vê de outra forma. Ela encontrou o seu jeito de harmonizar-se com deus. “Eu fumo quando eu quero falar cum Deus. Eu fumo quando eu quero fazer amor. Ultimamente eu e Deus fazemo amor muito bem de todo jeito” (WALKER, 1986, p. 197), ela esclarece assim sua relação com Deus. A partir desse amor ela ainda cria uma comunidade em sua volta. Celie relata em uma de suas cartas à irmã Nettie: “eu to feliz! Eu tenho um amor. Eu tenho um trabalho. Eu tenho dinheiro, amigos e tempo. E você ta viva e logo vai voltar pra casa. Com nossas crianças” (WALKER, 1986, p. 193).

Recomendações Finais.

Três tipos de conclusões são relevantes nesta análise. A primeira refere-se às identidades construídas pela personagem Janie Crawford, no romance Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neale Hurston (2002). Pode-se assegurar que as identidades de gênero e raça de Janie se desenvolvem a partir da sua busca do amor. A realização amorosa da personagem se processa em acordo como os valores da cultura negra, negociados nos limites dos seus três casamentos, ou relacionamentos afetivos com Killicks, Starks e Cake. Ela expressa o amor que teve com Tea Cake: “é que nem o oceano. É uma coisa que se move, mas mesmo assim toma a forma da praia que encontra, e é diferente em toda praia” (WALKER, 2002, p. 208).
A segunda conclusão se atém às identidades de gênero e raça elaboradas pela personagem Pecola Breedlove, na narrativa O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (2003). As identidades da menina Pecola evoluem a partir da busca do auto-amor, da auto-afirmação. Apesar dos seus encontros com mulheres com valores culturais negros, a realização do auto-amor da personagem se constrói em relação aos valores da cultura branca, representados pelos olhos azuis. Pecola não parece absorver os valores negros por não reconhecer autoridade racial nas meninas e nas prostitutas. Infelizmente, a cultura branca também não consegue garantir à menina negra nenhuma forma de autonomia emocional. “Só porque eu tenho olhos azuis, mais azuis do que os deles, eles ficam com preconceito” (MORRISON, 2003, p. 197) diz a menina, ainda descontente.
A terceira conclusão se alia às demandas identitárias de gênero e raça da personagem Celie, personagem central do romance A Cor Púrpura, de Alice Walker (1986). O estabelecimento das identidades de Celie acontece no contato que ela mantém com três mulheres negras: a irmã Nettie, a nora Sofia, e a amante Doci. Estas três formas de amizade representadas nas três mulheres atestam o crescimento emocional e espiritual de Celie. As próprias palavras de Celie confirmam sua autonomia. “Eu to feliz! Eu tenho um amor. Eu tenho um trabalho. Eu tenho dinheiro, amigos e tempo” (WALKER, 1986, p. 193), ela avalia a vida nova.
A centralidade no amor neste artigo sugere a possibilidade do estabelecimento do processo de dialogismo entre textos de autoras negras. O dialogismo, ou a significação como prefere Gates (1988), permite, como pretendemos deixar evidenciado, que “textos negros falem com outros textos negros” (GATES, 1988, p. xxvi).

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, S.C. Identity. In: Andrews, W. L., Foster, F.S., & Harris, T. (eds.). The Oxford Companion to African American Literature. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 379-383.
AVIRAM, A F. Gender Theory. In: Davidson, C. N. & Martin. L. W. (eds.). The Oxford Companion to Women’s Writing in the United States. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 342-345.
BROWN. B. Race. In: Davidson, C. N. & Martin, L.W. (eds.). The Oxford Companion to Women’s Writing in the United States. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 731-734.
FLAX, J. Subjectivity. In: Davidson, C. N. & Martin, L. W. (eds.). The Oxford Companion to Women’s Writing in The United States. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 859-860.
GATES, H.L. Jr. The Signifying Monkey: A Theory of African-American Literary Criticism. Oxford: Oxford University Press. 1988.
HURSTON, Z. N. Seus Olhos Viam Deus. Rio de Janeiro: Record, 2002.
MORRISON, T. O Olho Mais Azul. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
WALKER, A. A Cor Púrpura. São Paulo: Marco Zero, 1986.
WALKER, A. Womanism. In: In Search for Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose. New York: A Harvest/HBJ Book, 1983, p. xi-xii.