quinta-feira, 23 de junho de 2011

AMOR E IDENTIDADES FEMININAS DE GÊNERO E RAÇA NA LITERATURA AFRO-AMERICANA DE MULHERES

POR
JOSÉ ENDOENÇA MARTINS
RENATA NERIS RODRIGUES

RESUMO
O estudo analisa as aproximações entre amor e identidades de gênero e raça de três mulheres negras: Janie Crawford, Pecola Breedlove e Celie Jackson, personagens centrais dos romances Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neal Hurston (2002), O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (2003) e A Cor Púrpura, de Alice Walker (1986). Jane Flax (1995) esclarece que “raça, gênero, localização geográfica, identidade sexual, idade, condição física e classe contribuem em múltiplos e contraditórios modos na constituição da subjetividade da mulher e nos significados e n natureza de suas práticas” (FLAX, 1995, p. 859). Nos limites de raça e gênero, Janie alia identidade à busca do amor romântico nos casamentos com Logan Killicks, Joe Starks e Tea Cake. O amor surge com o último marido. Pecola associa identidade à procura do auto-amor na amizade com a família McTeer, as prostitutas, e o curandeiro Soaphead Church. A menina não é capaz de construir estabilidade emocional porque a faz depender da posse de olhos azuis. Como seus azuis são um desejo, nunca uma realidade ela não é capaz de desenvolver auto-amor. Finalmente, Celie relaciona sua identidade à experiência do amor homoerótico, na companhia da irmã Nettie, a nora Sofia e a amante Docí. Com Doçi ela encontra amor e inicia uma nova visão de Deus.
Palavras-Chave: Identidade, Amor, Auto-Amor, Amor Homoerótico.


Introdução

Neste artigo, fazemos discussão dos resultados alcançados pelo projeto de pesquisa Identidades Femininas de Gênero e Raça na Literatura Afro-Americana de Mulheres. O foco do nosso texto recai nas formas como três mulheres – Janie Crawford, Pecola Breedlove e Celie Jackson – constroem identidades a partir das experiências que vivem nos romances Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neale Hurston (1937), O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (1970) e A Cor Púpura,de Alice Walker (1982)
Objetivamos examinar, nesta análise, a experiência de dialogismo que acreditamos existir entre os romances. Quando se trata de textos de autoras negras, Gates (1988) sugere que o dialogismo deve receber o nome de significação. Para ele, significação é o processo através do qual “um (texto) significa sobre o outro, por meio de revisão e repetição, e diferença tropológicas” (GATES, 1988, p. 88). O autor enfatiza que a significação é uma forma de intertextualidade, e permite que “textos negros falem com outros textos negros” (GATES, 1988, p. xxvi). Vamos mostrar como o dialogismo negro aproxima as categorias de gênero e raça ao estabelecer relações dialógicas entre o modo como Janie, Pecola e Celie constroem identidades. Amittai F. Aviram (1995) argumenta que “pensa-se gênero como algo que a sociedade constrói,” e que, por isso, “este construcionismo implica em que os traços ‘masculinos’ e ‘femininos’ não sejam tomados como expressões de uma essência natural, universal, eterna de homens e mulheres. Antes são ficções convencionalmente aceitas, como o Papai Noel.” (AVIRAM, 1995, p. 342). E quando discute raça, Brown (1995) nos ensina que raça também é “um construto cultural,” nunca “um instrumento natural de classificação” (BROWN, 1995, p. 731). Brown explica que raça é “uma construção ideológica e histórica” (BROWN, 1995, p. 731). E sugere que “tanto os fatores envolvidos na construção de raça como as sutis relações de poder devem ser expostas” (BROWN, 1995, p. 731).
A metodologia apresenta três momentos. Inicialmente, discutiremos as relações entre identidade e amor nas experiências que Janie Crawford vivencia no romance Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neale Hurston (2002). Enfatizaremos que a personagem estabelece sua identidade em sua incansável busca do amor romântico. Num segundo momento, apresentaremos as aproximações entre identidade e auto-amor nas experiências que Pecola Breedlove desenvolve no romance O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (2003). Insistiremos em que seu desejo de reafirmar auto-amor, infelizmente, não subsiste. Por fim, estudaremos as relações entre identidade e amor homoerótico nas vivências de Celie Jackson, no romance A Cor Púrpura, Alice Walker (1986). Afirmaremos que o amor homoerótico dará à personagem a autonomia e a independência que ela tanto almeja.

1. Janie, Amor e Identidade

No romance Seus Olhos Viam Deus, a jovem negra Janie constrói subjetividade autônoma durante a busca do amor romântico. Em sua insistência no amor, a jovem une gênero e raça. Jane Flax (1995) afirma que “raça, gênero, localização geográfica, identidade sexual, idade, condição física e classe contribuem em múltiplos e contraditórios modos na constituição da subjetividade da mulher e nos significados e na natureza de suas práticas” (FLAX, 1995, p. 859). Ao longo da análise, vamos perceber como subjetividade e amor perpassam as relações de gênero e raça da personagem. Jane é vista a partir das experiências amorosas e dos casamentos com três homens totalmente diferentes: Logan Killicks, Joe Stark e Tea Cake. Estes casamentos permitem que Janie consiga avançar da esperança no amor à concreta experiência do sentimento amoroso.
Por decisão da avó Babá, o primeiro casamento de Janie acontece com Logan Killicks. Ainda não se trata da busca do amor romântico, mas pode ser visto como a primeira tentativa amorosa da personagem. Killicks não é o príncipe encantado, mas tem o que a avó enxerga como essencial num casamento. Ele é sinônimo de segurança para a sua neta. Para a avó, o futuro marido de Janie “é um homem de bem” (HURSTON, 2002, p. 30). E tem bens próprios: “uma casa comprada e paga, e vinte e quatro hectare de terra” (HURSTON, 2002, p. 39). Para a avó a segurança financeira da neta é fator decisivo no casamento. Para a neta, porém, amor é aspecto mais importante que dinheiro. Janie só aceita casar-se com Logan, como ela própria diz, “para esperar o começo do amor” (HURSTON, 2002, p. 38).
Durante anos, ela trabalha na fazendo do marido e espera o amor romântico chegar, mas o amor – aquele sentimento forte que ela experimenta anos antes, debaixo da pereira com o primeiro namorado – não vem. Quem entra em sua vida é Joe Starks, o segundo pretendente. Diferente do marido agricultor e rude, Joe é articulado e fala bem. Ele a convence a deixar o marido e a partir com ele. Janie o aceita, acreditando, mais uma vez, na possibilidade do amor. A esperança no amor com Joe está presente na metáfora da autora: Janie “sabia que Deus rasgava o mundo velho toda noite e construía um novo ao nascer do sol” (HURSTON, 2002, p. 41). Ela acredita que Joe pode ser a saída para a sua infelicidade conjugal.
Com Joe, o segundo casamento de Janie é a segunda busca do amor. Ela crê que Joe pode ser “um novo (mundo) ao nascer do sol” (HURSTON, 2002, p.41) em sua vida e se deixa levar com ele. Os dois criam uma nova comunidade e ele se torna uma autoridade entre as pessoas. Tem posses, prestígio e poder. A companhia de Joe é instigante. Ele a trata bem e a valoriza. Ele representa “o nascer do sol, pólen e árvores em flor (...) o horizonte distante (...) mudança e oportunidade” (HURSTON, 2002, p. 46). Com o tempo, apesar da possibilidade de mudança que a presença de Joe traz para a vida da moça, nem tudo é felicidade ou auto-estima. O problema está em que Joe vê a esposa como objeto. E acredita que ela “foi feita para ficar sentada na varanda da frente, balançando numa cadeira de balanço e se abanando, e comendo as batata que os outros planta só pra tu” (HURSTON, 2002, p. 60). Como no primeiro casamento com Logan, Janie tem casa, bens e segurança, mas não tem o tipo de amor que deseja encontrar. Ela chega à conclusão de que com o marido Joe, “a vida num é nada mais que uma loja e uma casa” (HURSTON, 2002, p.91). A Necessidade de romantismo que sente lhe diz que o que tem com Joe é muito pouco. Sem amor, uma casa e uma loja, tudo isso é muito pouco para ela. O desfecho do relacionamento é trágico. A narradora conta que Janie enfrenta o marido diante de outras pessoas e o ofende gravemente. Ela rouba-lhe “a ilusão de irresistível virilidade que todo homem alimenta” (HURSTON, 2002, p.94). A acusação de impotência sexual leva Joe ao silêncio, recolhimento, doença e morte. A viuvez e a herança que herda mudam a vida da mulher. Sozinha, independente, autônoma e rica, Janie se transforma em outra mulher. Como ela própria diz, a “menina se fora, mas uma mulher bonita tomara o seu lugar” (HURSTON, 2002, p.103).
Com Tea Cake acontece o terceiro casamento. Com ele, chega o verdadeiro amor para esta mulher bonita em que Janie se transforma. Diferente de Logan, que a obriga a trabalhar no campo, e, também, de Joe, que a trata como um objeto de estimação, Tea Cake traz-lhe a possibilidade da liberdade e da autonomia emocionais. Ela pode mostrar-lhe quem ela realmente é. Pode, também, expressar-se como bem entende. Essa sensação de liberdade e de sentir-se amada torna-a jovem, disposta e feliz. Tea Cake também é feliz e se alegra com a esposa. “É sempre uma menininha. Deus deu um jeito de tu gastar a velhice primeiro com outro, e poupar os dias de menina pra gastar comigo” (HURSTON, 2002, p. 197), Tea Cake comenta. Neste clima de liberdade e amor em que Janie e Tea vivem, ela fala do amor que encontra e sente: “é que nem o oceano. É uma coisa que se move, mas mesmo assim toma a forma da praia que encontra, e é diferente em toda praia” (HURSTON, 2002, p. 208).

2. Pecola, Auto-Amor e Identidade

Se Gates (1988) tem razão quando afirma que a significação permite que “textos negros falem com outros textos negros” (GATES, 1988, p. xxvi), então pode-se perceber um tipo de dialogismo que se estabelece entre o amor que Janie realiza e o que Pecola procura. Diferente de Janie que encontra o amor romântico e o vive intensamente com o marido Tea Cake, Pecola corre atrás do auto-amor. Ela acredita que o auto-amor é o primeiro passo na direção do amor dos outros. Sua subjetividade e identidade surgem associadas à auto-afirmação. Alexander (1997) esclarece que “identidade pode ser definida como a busca do ser e suas relações com contextos e realidades sociais” (ALEXANDER, 1997, p. 379). Para Hurston (2002) a idéia de identidade se associa a “crenças e valores culturais e socialmente construídos” (ALEXANDER, 1997, p. 381). O auto-amor da menina Pecola desenvolve-se nos seus contatos com outras mulheres, as irmãs McTeer e as prostitutas, e com os olhos azuis que ela acha que possui.
O primeiro passo de Pecola na direção do auto-amor acontece na companhia das irmãs Cláudia e Frieda McTeer. A convivência com as meninas McTeer é fundamental para Pecola. É a partir das conversas que tem com as irmãs que a personagem entra em contato com valores culturais negros: família estruturada, casamento estável, solidariedade, companheirismo e cultura. Ela tem a sua disposição “crenças e valores culturais” negros, como sugere Alexander (1997). A dedicação da Senhora MacTeer à família e a proteção do Senhor McTeer às filhas quando estas são ameaçadas em sua integridade moral são alguns exemplos do tipo de família que Frieda e Claudia colocam à disposição de Pecola. Porém, Pecola parece incapaz de perceber este ambiente como propício para as suas necessidade de amor e auto-amor. Ela é incapaz de construir auto-estima no contato com os valores negros da família McTeer.
Ela vai, então, desenvolver auto-estima em relação a alguns objetos que realçam os valores brancos. Um desses objetos é a xícara com a figura de Shirley Temple, a artista branca do cinema. A narradora conta que Pecola “gostava da xícara com a Shirley Temple e aproveitava toda oportunidade para tomar leite nela, só para a segurar e ver o rosto meigo da Shirley” (MORRISON, 2003, p. 27). Shirley Temple é um símbolo branco. Loura e bonita, a artista tem olhos azuis. Pecola vê na artista o ideal de beleza que ela almeja para si. E que pode torná-la amada. O desejo de integrar-se à comunidade e ser aceita toma conta da personagem. Este sentimento a encoraja a buscar beleza e amor. Ela acredita que beleza e amor andam juntos. A convivência com as meninas McTeer enseja a que Pecola experimente momentos de atenção, zelo e proteção. Frieda e Cláudia gostam de Pecola. Fazem agrados, oferecendo-lhe bolachas e leite na xícara com a Shirley Temple. Elas não a censuram quando Pecola fica enternecida “olhando ternamente para a silhueta do rosto com covinhas de Shirley Temple” (MORRISON, 2003, p. 23). Em algumas situações, as irmãs MacTeer protegem Pecola de insultos na escola e na rua. Neste ambiente familiar, sem ser capaz de perceber o amor que recebe da família, Pecola manifesta sua preocupação em ser amada. “Como a gente faz para alguém amar a gente?” (MORRISON, 2002, p.23), ela pergunta às duas irmãs. A partir daí, Pecola passa a desejar ser amada e a crer que o amor a livrará do ambiente adverso em que vive na sua verdadeira família, e mudará sua vida.
Na segunda tentativa na direção do auto-amor, Pecola investe suas energias na amizade com as prostitutas Marie, China e Polaca. Trata-se de uma extensão da amizade que Pecola tem com as irmãs Claudia e Frieda. A amizade com as prostitutas abre uma nova brecha que permite que Pecola sonhe por um curto tempo e imagine o amor. “Pecola gostava muito delas, visitava-as, fazia servicinhos de rua para elas. Elas, em troca, não a desprezavam” (MORRISON, 2003, p. 54), conta a narradora Cláudia. As prostitutas são auto-confiantes, cantam, gostam de comida, de rir e de contar histórias. Elas a tratam bem, protegem-na e se dirigem a ela com nomes carinhosos. Com as prostitutas Pecola aprende novas formas de enxergar e conceber o amor, o auto-amor e a amizade. Essa relação com as prostitutas e suas histórias abre um leque de novos pensamentos a Pecola. Porém, o amor continua a preocupação central dela. Ela ainda define o amor em sua visão infantil e ingênua. Para Pecola, o amor era imaginar “como é que os adultos agem quando se amam” (MORRISON, 2003, p. 61). Ela, então, imagina o pai e a mãe fazendo amor. A mente traz-lhe a imagem

De Cholly e da sra. Breedlove na cama. Ele fazendo ruídos como se sentisse dor, como se alguma coisa o segurasse pela garganta e não soltasse. Terríveis como eram, esses sons não eram tão maus quanto a ausência de som da mãe. Era como se ela nem estivesse lá. Talvez o amor fosse aquilo. Sons estrangulados e silêncio” (MORRISON, 2003, p. 61).

Pecola Breedlove é incapaz de perceber amor ou desenvolver auto-amor onde eles podem ser articulados. Não os percebe na companhia das meninas McTeer, nem entre as prostitutas. Ela, então, vai procurá-los a fora dos valores negros que estas mulheres representam. Busca-os nos valores brancos, representados nos olhos azuis. Aquele desejo que começa quando ela bebe leite na xícara com a imagem de Shirley Temple, na casa dos McTeer, agora se transforma numa obsessão incontrolável. Inicialmente, sua atitude é descartar seus olhos negros. Ela pensa: “eram sempre os olhos que sobravam” (MORRISON, 2003, p. 49) e “por mais que tentasse, nunca conseguia fazer os olhos desaparecerem” (MORRISON, 2003, p. 49), ela pensa diante de espelho. Os olhos negros são a marca da infelicidade que toma conta dela. Deseja entender a feiúra dos olhos. “Passava longas horas sentada diante do espelho, tentando descobrir o segredo da feiúra, a feiúra que a fazia ignorada ou desprezada na escola, tanto pelos professores quanto pelos colegas” (MORRISON, 2003, p. 49), explica a narradora.
A segunda atitude de Pecola é substituir seus olhos negros por olhos azuis. Na sua mente, e na comunidade em que vive, os olhos azuis representam a beleza que a aproximará do mundo gentil e delicado onde a sutileza e o encanto das crianças de pele rosada amenizam qualquer sofrimento. Claudia, a narradora, descreve a obsessão da amiga: “tinha ocorrido a Pecola, havia alguém tempo, que se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente” (MORRISON, 2003, p. 50). Pressionada pelo desejo de possuir olhos azuis, Pecola parte para a ação. Primeiro pede os olhos azuis a Deus: “rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente” (MORRISON, 2003, p.50). Depois, visita o mágico Soaphead Church que a faz acreditar que tem os desejados olhos azuis. Ele deseja ajudá-la porque acredita que seu pedido é instigante e inusitado. Porém, ele a engana e a manda para casa com a certeza de que carrega os sonhados olhos azuis em lugar dos negros.
Mais tarde, em casa, Pecola conversa com os supostos olhos azuis diante do espelho. Ela se sente feliz, olha-se no espelho, e questiona se seus olhos azuis são “realmente, honestamente, azulmente bonitos” (MORRISON, 2003, p.195). E reage: “só porque eu tenho olhos azuis, mais azuis do que os deles, eles ficam com preconceito” (MORRISON, 2003, p. 197) ela diz para si mesma. Para Pecola ter olhos azuis ainda não é tudo, é preciso que sejam “os olhos mais azuis” (MORRISON, 2003, p. 204), como os que ela supõe possuir.

3. Celie, Amor Homoerótico e Identidade

O dialogismo, ou a significação, postulado por Gates (1988) entre textos negros, agora vai somar a busca que Celie vai fazer do amor homoerótico ao amor romântico de Janie e o auto-amor de Pecola. Podem estas buscas negras conversar entre si? A resposta é positiva. Isto porque, em suas extraordinárias experiências, Janie e Pecola desenvolvem identidade de amor e auto-amor. A primeira é feliz, a segunda se frustra. As experiências de Celie procuram uma alternativa às duas primeiras. Aliam identidade a amor homoerótico na companhia das mulheres Nettie, Sofia e Shug Avery. Com elas, Celie busca os interesses do grupo e da comunidade. King (1997) esclarece que Celie “constrói suas identidades através do poder transformador da amizade e do amor das mulheres negras” (KING, 1997, p. 163). King afirma que a identidade de Celie, a personagem central do romance, deriva do amor homoerótico, presente nas “retratos fortes das relações bissexuais, lésbicas e heterossexuais em meio a situações que penetram no âmago do desenvolvimento espiritual e emocional da mulher negra” (KING, 1997, p. 163). Walker (1983) cria um nome para o homoerotismo que ela estabelece entre mulheres negras: womanismo. Para a autora, a womanista, ou seja, a mulher negra que aciona o womanismo,

Ama outras mulheres, sexualmente e/ou não sexualmente. Aprecia e prefere a cultura da mulher, a flexibilidade emocional da mulher (valoriza as lágrimas como um contra-peso natural à risada), e a força da mulher. Às vezes ama homens individualmente, sexualmente e/ou não sexualmente. Compromete-se com a sobrevivência e a completude do seu povo, homens e mulheres” (WALKER, 1983, p.xi).

A primeira manifestação do womanismo de Celie inclui aliança afetiva com a irmã Nettie. A aliança das irmãs representa o amor fraterno. Através do amor, uma protege a outra e, juntas, procuram aprender e amadurecer. Inicialmente, Celie protege Nettie contra o assédio do padrasto. “Vou tomar conta dela. Cum ajuda de Deus” (WALKER, 1986, p. 12), ela esclarece. Em seguida se oferece como objeto das investidas do homem. Pede para ele a “pegar invés da Nettie” (WALKER, 1986, p.17). Celie acredita que a irmã ainda pode casar bem. Com ela é diferente. Ela foi estuprada duas vezes pelo padrasto. “Tem vez que ele inda fica olhando pra Nettie, mas eu sempre atrapalho ele. Agora eu vou dizer pra ela casar cum o Sinhô” (WALKER, 1986, p. 15), Celie explica. Celie deseja que Nettie tente “ter um ano bom na sua vida” (WALKER, 1986, p. 14) e estimula a irmã a casar-se com o pretendente que faz a proposta de casamento ao padrasto. O padrasto, porém, não aceita o pedido, afirmando que “a Nettie o senhor num pode levar. Mesmo. Nem agora, nem nunca” (WALKER, 1986, p. 18).
Na aliança entre as duas irmãs, Nettie também manifesta solidariedade para com Celie. Isto acontece na casa de Celie e do marido Sinhô. Ao ver a forma como a irmã é tratada pelos filhos do marido, Nettie a aconselha a não “deixa[r] eles dominarem você (...) você tem que mostrar para eles quem é que manda. (...) Você tem que brigar” (WALKER, 1986, p.28). Além deste tipo de apoio, Nettie ensina Celie a ler sobre as coisas do mundo. A própria Celie reconhece a iniciativa da irmã: ela “peleja pra ensinar o que tá acontecendo no mundo. Ela é boa professora (...) Todo dia ela lê, ela estuda, ela pratica caligrafia e tenta fazer a gente pensar” (WALKER, 1986, p. 27). Mais tarde, mesmo na Iminência de serem separadas pelo marido de Celie, o apoio entre as duas irmãs não diminui. Nettie se torna missionária na África e de lá, por meio de cartas, insiste que Celie deve continuar sua luta por liberdade. Aconselha a irmã a “lutar e se livrar do Albert. Ele não presta” (WALKER, 1986, p.117). Ensina que “neste mundo tem pessoas pretas que querem que a gente aprenda! Querem que a gente enxergue as coisas com clareza!” (WALKER, 1986, p.122). E Nettie procura despertar na irmã o gosto pelos costumes dos Olinka e a cultura africana. A interação entre as duas irmãs cria a possibilidade de fusão entre a cultura africana e a afro-americana.
O segundo momento do womanismo de Celie se dá na amizade que mantém com Sofia, a nora. O casamento de Sofia com Harpo, enteado de Celie, aproxima as duas mulheres. Sofia e Celie são diferentes. Sofia é forte, autônoma e independente em relação ao marido. Celie é completamente submissa ao marido Albert. Sofia procura mostrar o tipo de pessoa que acha que Celie é. Ela diz à amiga:

Você me lembra minha mãe. Ela ta debaixo do pé do meu pai. Tudo o que ele diz, ela faz. Ela nunca responde. Ela nunca se defende. Às vez tenta defender um pouco as criança, mas ela sempre entra pelo cano. Quando mais ele defende a gente, mais duro ele bate nela (WALKER, 1986, p.46).

Sofia também deseja que Celie perceba o tipo de mulher que ela, Sofia, é. Ela descreve sua luta por autonomia no mundo dos homens: “toda minha vida eu tive que brigar com meus primo e meus tio. Um minina nunca ta sigura numa família de home. Mas eu nunca pensei ter que brigar na minha própria casa” (WALKER, 1986, p.46).
Sofia procura esclarecer Celie a respeito do mundo branco. Ela não vê muita diferença entre os homens negros – marido, tios e primos – e os brancos. “Os branco nunca iscuta os negro, e pronto. Se eles iscuta, eles só iscuta o bastante pra poder dizer procê o que você deve fazer” (WALKER, 1986, p. 176). Sofia sabe que o crescimento emocional da mulher negra passa por as experiências que ela têm com os homens negros e o mundo branco. E sugere que a solidariedade feminina tem que levar este aspecto em consideração. “A gente sabe que não foi a gente que fez este mundo” (WALKER, 1986, p. 236), ela diz à amiga. A lição de Sofia é de força e Celie se fortalece em seu contato com esta amiga. E cresce espiritual e emocionalmente com as palavras e os exemplos de vida de Sofia.
O terceiro aspecto do womanismo de Celie se realiza na relação homoerótica que estabelece com Docí Avery. O esclarecimento de Walker (1983) para este tipo de amizade entre mulheres é a de que a womanista é “uma mulher que ama outras mulheres sexualmente” (WALKER, 1983, p. xi). Celie acaba amando Doci sexualmente depois de algum tempo de convivo. Porém, o amor homoerótico principia pela admiração. Celie fala da beleza de Doci: “a mulher mais linda queu já vi. Ela é mais bunita que minha mamãe. Ela é mais de dez mil vezes mais bunita que eu (...) A noite toda eu fico olhando. E agora quando eu sonho, eu sonho com Docí Avery. Ela ta vistida linda de morrer, rodando e rindo.” (WALKER, 1986, p.15-16). A admiração leva à ajuda mútua. Em casa, Celie toma conta da doença de Doci. Trata-se de dedicação total. Celie deseja ver a amiga curada e não mede esforços para ver Doci melhor. “Eu continuo trabalhando como se ela fosse uma boneca (...) ou como se fosse mamãe. Eu pentio e mimo, pentio e mimo” (WALKER, 1986, p. 56), Celie explicita.
A retribuição de Doci à atenção solidária de Celie é proporcional. Ela ensina Celie a amar-se e amar. A conhecer o próprio corpo, a sorrir e a beijar. Nesta relação de descoberta e auto-descoberta, as duas mulheres se amam, dormem juntas “que nem irmãs” (WALKER, 1986, p.134). E consideram-se “a família uma da outra” (WALKER, 1986, p. 166). Mais tarde, irmanadas no amor, Doci ensina Celie a respeito da concepção que ela tem de deus. Ela explica a Celie que deus “deu a vida pra você, uma boa saúde, e um boa mulher que ama você até a morte” (WALKER, 1986, p. 174). Para Doci o amor mútuo que elas sentem é uma graça divina e elas agradam a deus “cum o que a gente gosta de fazer” (WALKER, 1986, p.175). O ensinamento de Doci continua e ela esclarece que Deus é uma coisa, nem homem, nem mulher, nem negro, nem branco. “Deus ta dentro de você e dentro de todo mundo. (...) E às vezes ela [essa coisa] se manifesta mesmo se você num ta procurando” (WALKER, 1986, p. 177). Ela também procura deixar claro que encontrar a Deus é encontrar a felicidade. “Quando você consegue sentir isso [Essa coisa, Deus], e fica feliz purque ta sentindo isso, então você encontrou” (WALKER, 1986, p. 177), ela explica.
Celie aprende a valorizar a vida, a amar-se e a amar. Agora, ela sente amor por si mesma, ama Docí e ama deus. Celie dá valor a deus e o vê de outra forma. Ela encontrou o seu jeito de harmonizar-se com deus. “Eu fumo quando eu quero falar cum Deus. Eu fumo quando eu quero fazer amor. Ultimamente eu e Deus fazemo amor muito bem de todo jeito” (WALKER, 1986, p. 197), ela esclarece assim sua relação com Deus. A partir desse amor ela ainda cria uma comunidade em sua volta. Celie relata em uma de suas cartas à irmã Nettie: “eu to feliz! Eu tenho um amor. Eu tenho um trabalho. Eu tenho dinheiro, amigos e tempo. E você ta viva e logo vai voltar pra casa. Com nossas crianças” (WALKER, 1986, p. 193).

Recomendações Finais.

Três tipos de conclusões são relevantes nesta análise. A primeira refere-se às identidades construídas pela personagem Janie Crawford, no romance Seus Olhos Viam Deus, de Zora Neale Hurston (2002). Pode-se assegurar que as identidades de gênero e raça de Janie se desenvolvem a partir da sua busca do amor. A realização amorosa da personagem se processa em acordo como os valores da cultura negra, negociados nos limites dos seus três casamentos, ou relacionamentos afetivos com Killicks, Starks e Cake. Ela expressa o amor que teve com Tea Cake: “é que nem o oceano. É uma coisa que se move, mas mesmo assim toma a forma da praia que encontra, e é diferente em toda praia” (WALKER, 2002, p. 208).
A segunda conclusão se atém às identidades de gênero e raça elaboradas pela personagem Pecola Breedlove, na narrativa O Olho Mais Azul, de Toni Morrison (2003). As identidades da menina Pecola evoluem a partir da busca do auto-amor, da auto-afirmação. Apesar dos seus encontros com mulheres com valores culturais negros, a realização do auto-amor da personagem se constrói em relação aos valores da cultura branca, representados pelos olhos azuis. Pecola não parece absorver os valores negros por não reconhecer autoridade racial nas meninas e nas prostitutas. Infelizmente, a cultura branca também não consegue garantir à menina negra nenhuma forma de autonomia emocional. “Só porque eu tenho olhos azuis, mais azuis do que os deles, eles ficam com preconceito” (MORRISON, 2003, p. 197) diz a menina, ainda descontente.
A terceira conclusão se alia às demandas identitárias de gênero e raça da personagem Celie, personagem central do romance A Cor Púrpura, de Alice Walker (1986). O estabelecimento das identidades de Celie acontece no contato que ela mantém com três mulheres negras: a irmã Nettie, a nora Sofia, e a amante Doci. Estas três formas de amizade representadas nas três mulheres atestam o crescimento emocional e espiritual de Celie. As próprias palavras de Celie confirmam sua autonomia. “Eu to feliz! Eu tenho um amor. Eu tenho um trabalho. Eu tenho dinheiro, amigos e tempo” (WALKER, 1986, p. 193), ela avalia a vida nova.
A centralidade no amor neste artigo sugere a possibilidade do estabelecimento do processo de dialogismo entre textos de autoras negras. O dialogismo, ou a significação como prefere Gates (1988), permite, como pretendemos deixar evidenciado, que “textos negros falem com outros textos negros” (GATES, 1988, p. xxvi).

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, S.C. Identity. In: Andrews, W. L., Foster, F.S., & Harris, T. (eds.). The Oxford Companion to African American Literature. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 379-383.
AVIRAM, A F. Gender Theory. In: Davidson, C. N. & Martin. L. W. (eds.). The Oxford Companion to Women’s Writing in the United States. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 342-345.
BROWN. B. Race. In: Davidson, C. N. & Martin, L.W. (eds.). The Oxford Companion to Women’s Writing in the United States. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 731-734.
FLAX, J. Subjectivity. In: Davidson, C. N. & Martin, L. W. (eds.). The Oxford Companion to Women’s Writing in The United States. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 859-860.
GATES, H.L. Jr. The Signifying Monkey: A Theory of African-American Literary Criticism. Oxford: Oxford University Press. 1988.
HURSTON, Z. N. Seus Olhos Viam Deus. Rio de Janeiro: Record, 2002.
MORRISON, T. O Olho Mais Azul. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
WALKER, A. A Cor Púrpura. São Paulo: Marco Zero, 1986.
WALKER, A. Womanism. In: In Search for Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose. New York: A Harvest/HBJ Book, 1983, p. xi-xii.

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