sexta-feira, 24 de junho de 2011

NAUEMBLU E CÓDIGOS DE LINGUAGEM NA POESIA DE DENNIS RADUNZ: EXEUS, LIVRO DE MERCÚRIO E EXTRAVIÁRIO.

JOSÉ ENDOENÇA MARTINS

A tentativa, neste ensaio, de examinar criticamente o espaço ocupado por Radünz (1998, 2001, 2006) no conjunto da tradição poética de Blumenau requer o estabelecimento de algum corpo teórico, ainda que precário. Pode-se pensar que uma teorização provisória desta tradição começa a delinear-se em 1880, a partir da produção poética dos imigrantes, segue nos anos sessenta do século vinte com a poesia em brasileiro e vai encontrar, na década de noventa, os poemas de outro grupo de poetas. Tematicamente abarca dois tipos de dualismos: Saudade e Esperança, dos poetas imigrantes; Blumenalva e Nauemblu, o primeiro como preocupação temática dos anos sessenta do século vinte; o segundo como interesse de fundo dos poetas da década de noventa.
Proponho uma inicial caracterização para esta tradição. Entendo que, de um lado, Saudade e Blumenalva apresentam elementos poéticos comuns, especialmente aqueles relacionados a um tipo de modernidade presente no Deutschtum. Do outro, acredito que Esperança e Nauemblu abrigam temas semelhantes, ligados a uma certa pós-modernidade associada ao Brasilianertum.

Códigos de Blumenalva.

A discussão dos códigos de Blumenalva remete a outros códigos mais antigos na história da literatura blumenauense: os códigos de Saudade. Os dois grupos de códigos se imbricam cronologicamente, Saudade, entre 1880 e 1940; Blumenalva, de 1960 a 1990. Quando penso nos temas que atraem os poetas dos dois códigos, percebo que os do primeiro ampliam os do último, mas também que aqueles se distanciam destes. Na análise da literatura dos imigrantes alemães, Huber (1993) se dedica aos códigos de Saudade. A estudiosa não emprega o termo código – trata-se de uma preferência minha - mas penso que a palavra se aplica ao tipo de análise que desenvolve. No livro Saudade e Esperança: o Dualismo do Imigrante Alemão Refletido em sua Literatura, Huber procura dar conta da presença do tema Saudade nos textos poéticos dos primeiros poetas da colônia de Blumenau. Alguns desses códigos ou temas, segundo a autora, dão contornos aos sintomas de Saudade presentes nas reminiscências que os poetas apresentam da terra deixada para trás, a Alemanha, e deixam conseqüências. Os resultados aparecem no Deutschtum, termo que a autora utiliza para delinear o patrimônio cultural alemão, o qual os imigrantes procuram preservar de variadas maneiras, na colônia, e os poetas não deixam de expressar nos poemas. Huber explica o que significa esta expressão cultural:

O uso deste termo envolve a idéia de conservação de caracteres culturais, raciais e sociais dos grupos de origem germânica, através da igreja, da escola e do lar. Alguns interpretam a palavra apenas como perpetuação da língua e ouros como estados afetivos. Mesmo bilíngües, os imigrantes e seus descendentes continuam a falar no Deutschtum (HUBER, 1993:p.36).

No detalhamento posterior que desenvolve do Deutschtum do imigrante, Huber inclui aspectos como a construção, em território blumenauense, de um locus com características alemãs, simbolizadas no amor ao trabalho, nos olhos azuis e cabelos louros, na alimentação, no orgulho racial, no protestantismo, na experiência imperialista e na cumplicidade racial. Para a autora, estes e outros códigos de Saudade apresentam também aspectos discriminadores e racistas em relação ao brasileiro. E dão sustentação ao “pavor do verkaboklern ou verlusen, ou seja, tornar-se parecido com o brasileiro (luso ou caboclo), que para ele é o caboclo litorâneo, pobre e ignorante” (HUBER, 1993: p.37).
Alguns códigos de Saudade se evidenciam no poema Saudade, de Victor Schleiff. Saudade aparece de imediato no segundo verso: “para trás a pátria deixando, dos pais a casa.” E avança ao último da segunda estrofe onde o narrador reafirma que “e saudoso o olhar para trás viajava.” A viagem à terra-mãe, nos versos do poema, que Saudade permite e convida, aumenta o conjunto dos códigos da sensação de carências e ausências que o poema insere no coração do imigrante através da voz do narrador: a terra natal, o vale tranqüilo, os sinos, a igreja, a labuta dos pais, o sofrimento e a morte dos entes queridos. O poeta fecha a narrativa saudosa com uma pergunta que realça os códigos de Saudade de um ponto de vista crucial para o imigrante: o exílio. “Silencioso sonhar! Nos deu tempo, para tanto/ o novo viver?” (SAUDADE, 2002: p.41)
No poema Teuto-Brasileiro, de Georg Knoll, outros códigos de Saudade se apresentam, como a afirmação de uma identidade alemã monolítica da qual o imigrante alemão não deseja separar-se. No texto, o poeta afirma: “alemão o sou! Ouçam/dos pés à cabeça/sempre, alemã foi minha linhagem.” Um tipo de variação de Saudade aparece em outro poema, Recordação, do mesmo Knoll. O poeta direciona à pátria o olhar saudoso para recuperar a casa do pai, o jardim, as frutas, a escola, a chaminé, a torre da igreja e o sino. Percebe-se, nos versos, como o Deutschtum do narrador está calcado em vivências simples, pequenas, diárias. As palavras de Steil (2003), em estudo da poesia do imigrante, realçam as impressões de Knoll, esquematizadas acima:

Observe-se o mergulho que seus pensamentos permitem em suas lembranças, alçando inicialmente a cidade, como que a sobrevoasse e de lá avistasse a casa dos pais, para só depois alçar o círculo do jardim e por fim, chegar aos frutos. A citação do castelo, que continha a escola, é igualmente infantil (STEIL, 2003: p.53).

A sensação de distância do país natal e a experiência do exílio na pátria nova se intensificam. Na vivência destes elementos existenciais, os códigos de Saudade se transformam em lembranças de padecimento para o imigrante. Saudade se intensifica e seus códigos se tornam lembranças de sofrimento. Knoll conclui a recordação que tem da terra-mãe com uma nota de dor:

Tomado por profunda tristeza.
O quadro com lacrimejante olhar eu vejo,
Do tempo, espaço e laço de família esquecido,
Coração meu, de volta à terra em que nasci (RECORDAÇÃO, 2002: p.51).

Uma breve discussão teórica, aqui, parece pertinente com o intuito de relacionar Saudade às noções de cultura viajora, navio, passagem do meio, diáspora e exílio. Clifford (1997) argumenta que culturas viajam através “das histórias dos movimentos populacionais, exílio e migração em busca de trabalho” e se transformam em culturas diaspóricas, resultantes “das maneiras como as pessoas deixam e retornam as suas casas” (CLIFFORD, 1997: p. 27/28), de forma real ou imaginada em poemas. Ao definir diáspora como “uma casa longe de casa” o autor sugere que, no ambiente diaspórico, culturas se movimentam, se deslocam, se perdem em outras, resistem a outras, e se misturam a outras. Em suma, afirma Clifford:

[With varying degrees of urgency, they] negotiate and resist the social reality of poverty, violence, policing, and political and economic inequality. They articulate alternate public spheres, interpretive communities where critical alternatives (both traditional and emergent) can be expressed (CLIFFORD, 1997: 261).

Nos poemas de Schleiff e Knoll, os códigos de Saudade expressam esta comunidade interpretativa da vida na colônia e a cotejam com a antiga vida deixada na Europa.
Um outro elemento importante na relação de Saudade com a Alemanha dos imigrantes é navio e, dentro dele, a viagem. Para Gilroy (2001) o navio funciona como “uma sistema vivo, microcultural e micropolitico em movimento” e a viagem como “circulação de idéias e ativistas, bem como movimento de artefatos culturais e políticos, caminho de retorno redentor para uma terra natal” (GILROY, 2001:p.38). Infelizmente, os poemas dos imigrantes responsáveis pelos códigos de Saudade eliminam o navio e viagem de chegada de seus versos, pelo menos dos poemas aos quais tenho acesso. Qual a razão? Quando Steil (2002) intitula seu estudo da poesia do imigrante alemão Uma Viagem só de Chegada também deixa de fora o navio e a viagem, foco da sua discussão, insinuado no título. Diferentemente do que acontece na poesia, a ficção do imigrante parece atenta aos fenômenos do navio e da viagem, na diáspora alemã em Blumenau. Por exemplo, no conto Uma Enteada da Natureza, Hering (2000) introduz o navio e, dentro dele, problematiza a viagem de Kathrin à colônia, a desditosa protagonista, tangida pelo sofrimento, a solidão e o medo, paralisada pela monstruosidade de seu rosto disforme:

Quando embarcou no transatlântico, Kathrin não era mais vista por quase ninguém. (...) Noite após noite, ficava sentada debaixo da escada que conduzia à ponte de comando, na escuridão, com cuidado, para que ninguém a notasse. A música do baile, em meio ao ruído de muitos pés dançantes, batia em seus ouvidos. Kathrin só precisava se levantar e observar pela janela, acima de sua cabeça, para ver de muito perto o movimento alegre da vida. Mas o medo de ser vista era maior que a curiosidade (HERING, 2000: p.55-57).

A partir dos anos 60, os códigos de Saudade, desenvolvidos pelo Deutschtum do imigrante alemão, vão encontrar guarida, renovação e alento inusitado em seu mais dileto filho e seguidor: Lindolf Bell. Com Bell, o Deutschtum se movimenta no tempo e no tema. No corpo do poema de Bell, Saudade viaja – não mais no navio ausente, mas no barco – pelo leito do Itajaí-Açu, o rio que entrelaça o imigrante ao seu filho, o alemão ao brasileiro. Do rio como movimento em busca do encontro diz Bell (1980)

Na origem,
O rio. (...)
Na origem
O pó lido do tempo
Escrito em páginas claras
De afluentes águas
Entrelaçadas,
Estrelaçadas (BELL, 1980: p.53).
A respeito do poema, ele escreve:

Mas [Seja o poema] o exercício
Corpo a corpo do poeta
Entre uma dúvida e outra dúvida
Mas dentro do horizonte
Da certeza duvidada (BELL, 1980: p.124).

Em Bell, Saudade que vem do Deutschturm do imigrante e se encontra “escrito em páginas claras” do “exercício/corpo a corpo do poeta” adquire outro nome: Blumenalva. A proximidade entre Saudade do imigrante e Blumenalva de Bell – de outros escritores blumenauenses, também – entre os anos 60 e os 90, possui um invólucro teórico que merece ser discutido, mesmo que de forma breve. Nos últimos anos, venho publicando ensaios (Martins, 1999, 2000, 2002, 2004, 2005), nos quais estabeleço Blumenalva como metáfora da germanidade blumenauense a partir dos anos 60 do século vinte. Nos textos sugiro que, até aquela década, a germanidade que se vale de Saudade para ganhar expressão é descrita em língua alemã. E que, a partir daí, é através da língua brasileira que a germanidade vai ganhar visibilidade. Discuto, então, como Blumenalva dá seqüência à Saudade. Encontro o neologismo Blumenalva num poema de Bell, no qual o poeta escreve esta estrofe:

Minha cidade Blumenália,
Minhas ruas varridas,
Meus crepúsculos alvoradas (...)
Dentro de ti viajo, Blumenau
Blumenalva, Blumenágua (“BLUMENAU”).

Apresento, então, alguns códigos de Blumenalva, os quais procuro aproximar da Saudade dos imigrantes:

Saudade e Blumeanalva se aproximam porque desejam reafirmar como centro da literatura local certa experiência de germanidade, altamente determinante na vida da colônia. Tanto os adeptos de Saudade quanto os defensores de Blumenalva crêem que a literatura blumenauense constrói – reconstrói – localmente o retrato de uma cultura que não se afasta dos valores germânicos que encontram espaço propício na cidade de Blumenau desde a colonização (MARTINS, 2002: p. 82).

Penso que, como força inovadora do talento novo que surge Blumenalva alarga os contornos de Saudade, e a presentifica nos anos 1960 a 1990. Os códigos de Saudade, presentes nos poemas de Schleiff e Knoll, vão se reencontrar na poesia de As Vivências Elementares, de Bell (1980). Na obra de Bell, estão a terra, o pomar, a casa, o rio, o vale, a árvore, a carroça, elementos do cotidiano que já se encontram nas lembranças poéticas que os autores imigrantes têm da Alemanha deixada para trás. Da mesma forma que a diáspora dos ancestrais, a de Bell cria “uma casa longe de casa” onde suas vivências “deixam e retomam as sua casas”, para usar expressões de Clifford (1997) sobre culturas que viajam.
Dois poemas sugerem a construção da “casa longe de casa” que a diáspora e o exílio convidam: Blumenau, de Schleiff; e Blumenau, de Bell. Nos versos do primeiro poeta, a colônia de Blumenau, já centenária, se transforma numa réplica dos jardins da terra natal. Neles, todas as referências recebem tratamento paradisíaco em imagens como “mar de belos jardins”, “largo rio”, “azul do céu”, “a palmeira real”, “jardins de rosas”. Como resultado da experiência paradisíaca surge a vida harmoniosa que somente as rosas e os jardins são capazes de proporcionar. Por isso, “aqui reside felicidade, satisfação, bem-estar” canta o poeta. Na atmosfera poética e idílica dos versos, a cidade é uma imagem na pintura de um grande artista para a qual o poeta chama a atenção do apreciador: ”um belo quadro vocês vêem.” O artista, o criador da bela paisagem bucólica, bem, esse é o imigrante, “o valoroso lutador” que, na companhia da companheira e esposa, se transforma no “corajoso que domou a selvagem mata/que pântanos e juncos transformou em paraíso.” Schleiff fecha as evocações paradisíacas que reúne sobre Blumenau com a sensação do dever cumprido:

Assim digam orgulhoso: a nós nada foi presenteado!
Foi duro lutar, fatigoso o construir!
Com terra de sangrento suor saturada (BLUMENAU, 2002: p.125).

As evocações paradisíacas da cidade, presentes nos versos de Schleiff, reaparecem nos poema de Bell. O azul, os jardins, a paisagem verde e suas folhas, o rio, as ruas limpas, a estrela da tarde são imagens que o poeta utiliza para descrever as belezas que ele aprecia na cidade. Até aí os códigos estéticos de Saudade, veiculados pelo primeiro poeta, e a estética Blumenalva, reforçados pelo segundo, coincidem. De agora em diante, algumas diferenças entre as estéticas dos dois códigos. No seu texto, Bell substitui a metáfora do quadro artístico pela da fotografia. Além disso, em lugar do processo de construção pelo qual passa a cidade no texto de Schleiff, Bell faz surgir uma cidade pronta, acabada, em cujo ventre, o poeta – o narrador, Bell – viaja e cresce. O poeta de Blumenalva escreve:

Dentro de ti viajo, Blumenau,
Blumenalva, Blumenágua
Blumen Auriverde, estou em ti
Cidade-floraberta,
Estou em ti, cidadeestrela,
Estou em ti, estou em ti,
Em ti (“BLUMENAU”).

Bell ainda sugere que Blumenau é o paraíso que deve ser repartido em forma de solidariedade humana: “como uma hóstia/pedaço a pedaço/entre criaturas”, idéia que, em Schleiff, é substituída pela observação contemplativa, distante, sem partilha. Ainda, diferente de Schleiff, para quem o trabalhador braçal – o colono, o imigrante – do primeiro momento da colonização é o construtor de belezas paradisíacas, Bell utiliza o artista, o poeta, o escritor, que vai “deixar poemas escritos/deixar poemas por fazer, lapidar.” Desta maneira, aos “afiados machados” de Schleiff, Bell associa a palavra, como agente de construções de paraísos como Blumenau. E termina suas evocações da “didade-floraberta”, sugerindo Blumenau como o locus “onde a vida se resume/e permanece/para sempre, lume” (“BLUMENAU”).
Penso que, como força inovadora do talento novo que surge Blumenalva alarga os contornos de Saudade, e a presentifica nos anos 60 a 90. Os códigos de Saudade, presentes nos poemas de Schleiff e Knoll, vão se reencontrar na poesia de As Vivências Elementares, de Bell (1980). Na obra de Bell, estão a terra, o pomar, a casa, o rio, o vale, a árvore, a carroça, elementos do quotidiano que já se encontram nas lembranças poéticas que os autores imigrantes têm da Alemanha deixada para trás. Da mesma forma que a diáspora dos ancestrais, a de Bell cria “uma casa longe de casa” onde suas vivências “deixam e retornam as suas casas”, para usar expressões de Clifford (1997) sobre culturas que viajam.
Dois poemas sugerem a construção da “casa longe de casa” que a diáspora e o exílio convidam: Blumenau, de Schleiff; e Blumenau, de Bell. Nos versos do primeiro poeta, a colônia de Blumenau, já centenária, se transforma numa réplica dos jardins da terra natal. Neles, todas as referências recebem tratamento paradisíaco em imagens como “mar de belos jardins”, “largo rio”, “azul do céu”, “a palmeira real”, “jardins de rosas”. Como resultado da experiência paradisíaca surge a vida harmoniosa que somente as rosas e os jardins são capazes de proporcionar. Por isso, “aqui reside felicidade, satisfação, bem-estar” canta o poeta. Na atmosfera poética e idílica dos versos, a cidade é uma imagem na pintura de um grande artista para a qual o poeta chama a atenção do apreciador: ”um belo quadro vocês vêem.” O artista, o criador da bela paisagem bucólica, bem, esse é o imigrante, “o valoroso lutador” que, na companhia da companheira e esposa, se transforma no “corajoso que domou a selvagem mata/que pântanos e juncos transformou em paraíso.” Schleiff fecha as evocações paradisíacas que reúne sobre Blumenau com a sensação do dever cumprido:

Assim digam orgulhoso: a nós nada foi presenteado!
Foi duro lutar, fatigoso o construir!
Com terra de sangrento suor saturada (BLUMENAU, 2002: p.125).

As evocações paradisíacas da cidade, presentes nos versos de Schleiff, reaparecem nos poema de Bell. O azul, os jardins, a paisagem verde e suas folhas, o rio, as ruas limpas, a estrela da tarde são imagens que o poeta utiliza para descrever as belezas que ele aprecia na cidade. Até aí os códigos estéticos de Saudade, veiculados pelo primeiro poeta, e a estética Blumenalva, reforçados pelo segundo, coincidem. De agora em diante, algumas diferenças entre as estéticas dos dois códigos. No seu texto, Bell substitui a metáfora do quadro artístico pela da fotografia. Além disso, em lugar do processo de construção pelo qual passa a cidade no texto de Schleiff, Bell faz surgir uma cidade pronta, acabada, em cujo ventre, o poeta – o narrador, Bell – viaja e cresce. O poeta de Blumenalva escreve:

Dentro de ti viajo, Blumenau,
Blumenalva, Blumenágua
Blumen Auriverde, estou em ti
Cidade-floraberta,
Estou em ti, cidadeestrela,
Estou em ti, estou em ti,
Em ti (“BLUMENAU”).

Bell ainda sugere que Blumenau é o paraíso que deve ser repartido em forma de solidariedade humana: “como uma hóstia/pedaço a pedaço/entre criaturas”, idéia que, em Schleiff, é substituída pela observação contemplativa, distante, sem partilha. Ainda, diferente de Schleiff, para quem o trabalhador braçal – o colono, o imigrante – do primeiro momento da colonização é o construtor de belezas paradisíacas, Bell utiliza o artista, o poeta, o escritor, que vai “deixar poemas escritos/deixar poemas por fazer, lapidar.” Desta maneira, aos “afiados machados” de Schleiff, Bell associa a palavra, como agente de construções de paraísos como Blumenau. E termina suas evocações da “didade-floraberta”, sugerindo Blumenau como o locus “onde a vida se resume/e permanece/para sempre, lume” (“BLUMENAU”).
Códigos de Nauemblu

Como se dá com Blumenalva, Nauemblu também encontra suas origens na literatura dos primeiros imigrantes. Enquanto Blumenalva se associa a, e amplia os códigos de, Saudade, Nauemblu se aproxima dos elementos culturais de Esperança. De novo, é Huber (1993) quem explica os contornos de Esperança, presentes nos textos poéticos dos primeiros imigrantes. A pesquisadora argumenta que, em função do dualismo que nutre a poesia do imigrante com a força do Deustchtum, os códigos de Esperança atuam como a outra face daqueles de Saudade. Ou seja, enquanto Saudade tende a dar conta do apego do imigrante aos valores culturais da Alemanha, Esperança representa o conjunto das identidades do imigrante que busca integração com a cultura brasileira presente na colônia, e no país. Através de Esperança dá-se a combinação do Deutschtum com o Brasilianertum. Huber argumenta que, como código de Esperança, o Brasilianertum apresenta alguns aspectos: a satisfação que o imigrante sente quando se percebe atraído pela cultura brasileira, o desejo de participar desta nova sociedade que o recebe e lhe oferece abrigo seguro. Huber explica esta aproximação, presente especialmente nas novas gerações de imigrantes, aos códigos culturais de matizes brasileiros que ela chama de brasilização – verbrasilianern:

As novas gerações, em contato permanente com o meio nacional, também influenciam as mais velhas, com o processo chamado de verbrasilianern (brasilização ou abrasiliamento) que traz, por exemplo, uma maneira diversa de sentir e utilizar o tempo (aquisição da “paciência” brasileira”), proveniente do ritmo mais lento da vida social e das distâncias espaciais, bem como da maior liberdade aqui existente (controle social menos rígido) (HUBER, 1993:37).

No conjunto da produção poética dos imigrantes, os versos de Schleiff, no poema Os Primeiros Imigrantes, introduzem Esperança, no contato inicial do alemão com a colônia:

Seja, nova Pátria, por mulher e homem,
Terra das esperanças nossas, saudada,
A nós peregrinos do deserto uma Canaã,
Com leite e mel fluindo (IMIGRANTES, 2002: p.86).

A mesma sensação, presente em Schleiff, de que a vida será melhor prossegue no poema Minha Casa Paterna, de Damm. Nele, o narrador sugere grande identificação entre o imigrante e a paisagem local. “Tudo é luz do sol, tudo é perfume de flores-/Não se preocupa nem se aflige o coração aqui” (CASA, 2002: p. 111). Talvez seja a tranqüilidade que a vida na colônia oferece ao imigrante que o faz desejar assimilar o Brasilianertum. É assim que se expressa o narrador do poema Segunda Pátria, de Kahle: “à pátria nova vamos consagrar/nossa mente e os nossos braços” (PÁTRIA, 2002: p. 93).
Assim como tenho feito com a presença da metáfora Blumenalva na poesia blumenauense, venho me dedicando à analise da metáfora Nauemblu no texto poético local. Em vários textos analíticos (Martins, 1999, 2000, 2002, 2004, 2005), traço um panorama do que procuro desenhar com o neologismo Nauemblu. Sugiro que Nauemblu se relaciona com a poesia que a precede de forma dupla. Primeiro, os códigos de Nauemblu rearticulam os de Esperança; depois redimensionam os de Blumenalva. Os meus textos sobre a Literatura Blumenauense estabelecem os contornos teóricos da Nauemblu. No poema Nauemblu, de Radünz (1998), encontro o neologismo que vai servir de base teórica para a discussão literária que me agrada na poesia local. Trata-se de poema premiado em concursos literários, no qual Radünz escreve:

o rio irremovível
vela
sem açus
nauemblu (...)
nauemblu
irremovível,
indevassável
perece (RADÜNZ, 1998: p.25).

Explico quais as possibilidades teóricas que os códigos de Nauemblu disponiblizam para a discussão da poesia de Blumenau, a partir dos anos 90:

A leitura da produção literária local sugere que, diferente da monolítica, fechada, centrada e paradisíaca blumenalva, nauemblu se mostra plural, aberta, descentrada, estranha e nada paradisíaca. Visível na multi-traduzível evocação de nauemblu reside o caos – o estranhamento fértil – que se constrói e se reconstrói em inúmeras possibilidades de tramas e tecidos, tanto inesperados quanto inexplorados, ou desesperados (...). Se inscreve nas forças locais que vão muito além das germanidades, brasilidades e mundialidades culturais que o local é capaz de engendrar esteticamente. Por isso, cabem na nauemblu anamárias e albergálias, capitus, bertílias e kaputs, diablos e jundiás, riovários e sincretinismos, tatuagens niras e espontâneas (MARTINS, 2002: p. 84-85).

Vale repetir que os poemas de Radünz (1998, 2001, 2006) podem ser tomados como uma presentificação, nos anos noventa, ao mesmo tempo dos códigos de Esperança dos imigrantes alemães, e daqueles de Blumenalva de Bell.
Exemplifico.
Em parágrafos anteriores deste estudo demonstro como, no poema Blumenau, de Schleiff, a noção de Saudade se caracteriza através da maneira como o poeta sugere que o machado afiado do imigrante é o instrumento que vai dar à colônia a graça, a beleza e a pujança econômica da velha pátria. Proponho também que, no poema Blumenau, de Bell, o narrador abandona o machado para formatar a colônia à imagem e semelhança da mãe, mas se vale da palavra para obter efeitos de imitação semelhante. À maneira dos dois poetas, Radunz também deseja plasmar Blumenau. Porém, diferente daqueles, o novo poeta não o faz a partir do modelo da vela pátria. Ele transcende o padrão alemão, e inclui outros modelos. Sugiro que, se em Schleiff, Blumenau resulta dos “afiados machados” do colono imigrante e, se em Bell, “a identidade real” da cidade nasce da palavra do poeta, em Radünz, Blumenau não é o produto de algum demiurgo – colono, poeta - ou de seu instrumento de trabalho – machado, palavra. Em Radünz, Blumenau não é mais Blumenau, é Nauemblu. Ou seja, Blumenau vira Nauemblu por geração espontânea: a palavra que se auto-inventa, se auto-cria, se auto-produz, se “auto-nasce”, no caos. O que implica todas as possibilidades de significação, resignificação, ou des-significação.
Vejamos.
Os códigos da palavra em processo de auto-criação que Nauemblu evidencia encontram-se presentes nos três livros de poema de Radünz: Exeus, Livro de Mercúrio e Extraviário. Comecemos com a discussão da linguagem auto-referencial presente no primeiro livro. O título do livro – Exeus (1998) – já sugere a possibilidade da auto-invenção vocabular ao permitir uma leitura do neologismo como ex-eus, ou e-zeus, ex(e)us. Porém, a mais instigante, inesperada e criativa auto-referência em um termo se vincula à palavra Blumenau que, no poema, assume a forma nauemblu. No poema Habite-se, a palavra teopsia, em se contrapondo a autópsia, parece uma significação mais radical que as possibilidades de leitura do termo invivida. Os vocábulos ideiagem, imaginura e arcatura concorrem em qualidade com os demais indicados acima. O neologismo por-de-ser também é sugestivo em criatividade. Algumas auto-ressignificações poéticas, porém, se aproximam da construção vocabular elaborada por Bell em Blumenalva, na qual a recriação se dá por meio da adição de uma palavra a outra já existente, geralmente separadas por hífen. Algumas delas são: sal-gema, não-ser, só-tão, entranha-palavra.
É esta busca insistente da palavra auto-referente que vai emprestar contornos mais amplos ao sentido de migração que já se encontra estabelecido nos códigos de Esperança dos imigrantes. Lá, a migração se dá entre códigos culturais, mais precisamente entre o Deutschtum e o Brasilianertum; aqui, a migração acontece na linguagem. Radünz anuncia que “migro/intra-uterinamente/cavo/a carnação”, primeiro no fonema, sem seguida, no poema. É interessante notar que o imigrante de Esperança tem um oceano cultural a navegar entre a cultura alemã que traz e a cultura brasileira que assimila. O narrador de Radünz tem um rio em cujas águas cruza, migra, navega, mas, especialmente, guarda linguagens.

O rio reluz crepuscular
Em leme de nau névoa ia
Ou sede ou água guardar (EXEUS, 1998:p.48).

Na verdade, trata-se de rio pregado na paisagem lingüística do poeta, por isso, é “o rio irremovível”, “o rio indevassável”, cujos conluios são a própria experiência local, em forma de enchentes ou de discursos poéticos renovados, múltiplos, às vezes, caóticos como os de Nauemblu.
É no discurso poético, multifacetado de Radünz que as águas do rio tecem possibilidades existenciais. Em que a voz que se espalha pelo texto, uma voz de exeus, se encontra “em vias/de evoluir o rio/à foz”. A aquosidade do rio arma “a rede/com sede de ramas”. Este rio navegável fornece as águas das línguas que o poeta necessita para a travessia entre as diversas manifestações de nauemblu, para onde todas as linguagens e discursos confluem: ora é o inglês em “the fish”, ou “poem”, ora, o latim de “ora pro-nóbis” ou de “credo quia absurdum”, ora a língua indígena de “Metempsicose”. Esta confluência de linguagens e línguas, águas e ramas vai desembocar na sonoridade inesperada de dois versos, um latino; outro, brasileiro:

Absurdum absurdum absurdum
Fina surdina abala o bumbo (Exeus, 1998:p.45).

A linguagem poética, em Livro de Mercúrio (2001), não abandona sua ambição auto-inventiva. Ao contrário, a amplia e a rearticula. Palavras novas e inusitadas como desterráqueos se juntam a regenerrando, olvidro e invióbvio e vão provocar estranhamento diante de outras novidades vocabulares de mais óbvia pujança criativa. Neste grupo, repete-se a formula de Bell em palavras como peixes-cofre, estilhaços-fantasma e ninfografia, todas marcadas pela combinação de ternos.
As línguas também reaparecem nesta coleção de poemas. Não apenas em sua variedade – brasileiro, latim, xokleng, inglês, alemão – mas em sua função múltipla que, para o poeta e o narrador dos poemas, deve ser vista como falácia e simulação. Tomar a língua como um discurso único ou como objeto do homem é perigoso. Aqui, a língua, em suas variações – linguagem, discurso, comunicação – é sempre sujeito. Por isso, em sua subjetividade e sensualidade, a língua é dotada de agenciamento vivo:

A língua enleia a leveza
E levita em liame de gula
Entre acres licores e lábios
Onde a fala se lava: simula (MERCÚRIO, 2001:p.40).

Àquelas línguas que já estão presentes em Exeus, o poeta acrescenta ainda o idioma africano ioruba, o japonês e repete o latim em infans, o menino em cuja experiência a vida não se traduz em prática, mas em discurso, em linguagem, em fabulação, ou seja, auto-construção. O poeta, como faz na língua que enleia e levita, aqui insinua que a fala fala o ser, impossibilitando que o ser fale a fala. Língua, linguagem, discurso são detentores de subjetividades autônomas:

O fio de fabular a fala
Esfuma na infância e fale
Em flora de falhas: fia
O fóssil do afã e inflama
O fiapo de fábula (MÉRCURIO, 2001:p.37).

Pode-se dizer que é a partir da auto-criação vocabular que combina formas inusitadas com aspectos menos inesperados que a linguagem poética de Radünz se amplia e se re-articula em outras possibilidades, como a introdução do rio e seus conluios, como já acontece no primeiro livro. Agora, a presença do rio é ativa como a linguagem poética porque não apenas “o rio relê o seu rastro”, mas porque também “o rio relê o seu rumo”. E o que é mais relevante parece ser o fato de que “o rio relido nos restos/do raso rabisco de remos”, une os remos de duas etnias que singram aquelas águas, do percurso ao destino: os primeiros indígenas e os primeiros imigrantes, discursivamente presentes nas duas frases citadas, a indígena e a alemã:

enh mãg há kyl nã ten – ge mu.
.................................................
Im Himmel, da Gibt’s kein Bier
Drum trinken wir es hier (RADUNZ, 2001: p.29)

A proximidade espacial entre as duas línguas que o poema estabelece por meio do leito do rio não parece acompanhar a realidade histórica de destruição entre os segmentos étnicos. A conclusão do narrador é a de que “na lâmina d’água a lágrima ecoa”, aproximando, assim, texto poético e fato histórico.
A auto-reinvenção da linguagem retoma seu curso em Extraviário (2006). Neste inovado conjunto das possibilidades auto-criativas da língua poética, imperam palavras como ‘ssáparos’, desobumbra, ‘rápassos’, bocavulário, e onfalos. Tais novidades lingüísticas são exemplos maiores das capacidades da auto-refrencialidade contida na língua dos poemas. As menos inusitadas, mesmo assim dotadas de substancialidade criativa, fazem paralelo com as formas como a linguagem poética se desenvolve em Bell, à semelhança da sua presença nas duas obras anteriores. Só para citar, temos lesa-informação, erva-casta. E, ainda, uma série de combinações entre a palavra erva e outras, que vão desde uma tal erva-moira a erva-vagina.
A constatação interessante do autor diante das energias que a língua elabora para si mesma é dizer que “a língua não tem osso.” Porém, tem carne, pode-se adicionar, cuja elaboração se vale do espaço onde a boca e o vocabulário – bocavulário – se encontram para a pronúncia. E aí, então, a língua se pronuncia a si mesma, dizendo que:

E, então, bafeja e babuja
O sabor bom ainda broto
Se, no bojo dessa língua
Desabotoa o beijo e basta
A si, língua de línguas (EXTRAVIÁRIO, 2006: p. 42).

É no âmbito da auto-resgnificação v(b)ocab(v)ular da linguagem poética que o rio retoma suas águas de significação e re-significação em Extraviário. “O rio rebentas suas bordas”, diz o narrador, insinuando que as águas precisam transcender seus limites e ganhar outros percursos, quem sabe as enchentes anuais. O poeta repete as novas dimensões das águas ribeiras:

O rio é o rebento desta margem
A bordo de um resto de ribeiras:
Baldio ao desandar torrentes
Sobradas no barral da enchente:
Num rio de ires sonoroso: rim (EXTRAVIÁRIO, 2006:p. 22).

Por todo texto, a história liquefeita das possibilidades lingüísticas da poesia que ultrapassam os limites do rio ganham outras aquosidades, anteriores ou posteriores a ele. Encontram-se, então, as múltiplas aquosidades da “chuva [que] não me cura as horas mortas”, e das “procuras pelas águas prematuras”. Não é preciso imaginar o dilúvio com que as informações aquosas inundam o texto. Os versos brotam ora “no aguaçal de sal comum”, ou trazem “o ar baldio da chuva”, ou espreitam “no escuro da água falsa”. Às águas naturais há ainda a possibilidade da adição das águas humanas, oriundas da “lágrima sem farmácia”, do “ar de urânio em minha língua”.
Diante da língua que se auto-escreve ou se auto-extravia em mais línguas, linguagens e discursos, o poeta insiste em querer afirmar sua subjetividade humana. Porém, o resultado é sempre a confissão do sujeito que grita a precariedade de sua existência. Primeiro, ele admite que “sou foragido do juízo”, mais tarde alardeia que “eu, o escritor-fantasma”. Assim, admite sua imaterialidade. Esta é a única e possível admissão do escritor diante da palavra que se auto-enuncia: fantasma porque instrumento da palavra, sem aura, sua única remissão é despedir-se como autor: “e, então, despeço-me de ex-eus,” diz o narrador, para insistir mais adiante que “ali: aqui: margino a sós minha ossama.” E, também, o ghost-writer conjectura sobre a revisão do seu “sistema de sentires, de viveres e de haveres” por que conclui que são “as minas d’água das palavras que dessangram a coisa escrita.”
Para finalizar, do poeta, dos seus narradores e do leitor pode-se dizer, como o escritor-fantasma, da literatura [e da poesia] que se auto-enuncia:

O êxtase do instante de leitura que é (como o é durante o orgasmo o desmembramento de tudo o que em nós é identidade) o lugar erradio em que o leitor [o poeta, seus narradores também] se desorbita entre dois seres: o si mesmo e o ser [não-ser] no qual tornou-se, atravessado pelo texto (EXTRAVIÁRIO, 2006: p.53).

A palavra, em sua autonomia, vence por fim. O poeta desorbita-se, felizmente. O texto – língua, linguagem, fala, discurso – mata o autor, o poeta.

Modernidade e Pós-Modernidade: Novo Talento Entre Tradição e Ruptura


Sob este título me dedico a estabelecer relações entre a produção poética local e a teoria literária global. De um modo geral, penso que o local pode se articular com o global. Acredito que a discussão da poesia blumenauense, dos poetas imigrantes aos poetas dos dias de hoje, em cujos poemas, Saudade e Blumenalva, Esperança e Nauemblu buscam afirmações e espaços estéticos, pode receber uma contextualização mais ampla e abrangente. Insisto em que o artista não deseja ver-se restrito apenas ao local, mas almeja integrar o local e o universal. No âmbito da literatura em Blumenau, o poeta não almeja apenas a proximidade com o machado, necessário e útil no momento inicial da empreitada artística; menos ainda anseia somente a dependência da palavra que avança para além das possibilidades do machado, mas que, como machado, apenas desenvolve uma de suas capacidades: o de funcionar como instrumento de criação de objetos exteriores. O poeta blumenauense, a partir dos noventa do século vinte, busca a palavra que se auto-cria e se auto-recria.
Na maneira como percebo as relações entre o local e o global, procuro acoplar modernidade a Saudade e Blumenalva. Procuro também deixar claro que Blumenalva é um avanço estético em relação a Saudade. Assim como, ainda que exercendo a função de instrumento de construção de algo externo a si mesmos, a língua na poesia de Bell, se transforma num ganho poeticamente significativo em relação ao machado, no poema de Schlleiff. Noto que o braçal necessita do mental, que os dois são habilidades úteis e complementares no tempo, colocando lado a lado o velho e novo. A idéia de modernidade que interessa ao estudo vem das relações que Eliot (1989) estabelece entre o novo artista e a tradição. O crítico e poeta anglo-americano argumenta, no ensaio Tradição e Talento Individual, que as relações entre uma tradição literária já totalmente estabelecida, firmada, e o talento individual que aparece são interessantes porque sugerem um tipo de harmonia entre adaptação ao, e transformação do, cânone vigente. Eliot escreve que uma tradição não é uma herança que alguém recebe como doação. “Se alguém a deseja,“ ele afirma, “deve conquistá-la através de um grande esforço” (ELIOT, 1989:p.38). Trata-se de um diálogo, um convívio – nunca uma ingênua conformação – entre os artistas do passado e os do presente. Para Eliot, a tradição é um conjunto de obras que pré-existem ao novo talento que surge. Estas obras, ou seja, estes “monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si (...) completa antes que a nova obra apareça” (ELIOT, 1989: p.39). Eliot explica relação entre a tradição e o talento individual:

Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os aristas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos (...) O que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente com relação a todas obras de arte que a precedem. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo (ELIOT, 1989: p. 39).

A proposta de Eliot é relevante, mas apresenta uma fraqueza: não permite ruptura com o, nem subversão do, passado no presente. Aí reside a salvação da tradição e do talento individual que chega, a quem é permitido inovar desde que não rompa, desde que atue nos limites da tradição. Gysin (2004) explica a força e a debilidade da linguagem – poética e ficcional - do escritor moderno:
The modernist [writing] is experimental and innovatory in form; it foregrounds the subconscious and unconscious regions of the human mind; it frequently breaks the linearity of the plot and often makes use of “new” strategies of point of view, such as the technique of “stream-of-consciousness.” Nevertheless, it usually compensates for such breaches of conventional mimetic writing by trying to establish unity, closure, identity, etc. on another (higher or lower) level of discourse (GYSIN, 2004: p. 140-141).

Em outras palavras, há sempre a necessidade, da parte do artista moderno, de encontrar uma tábua de salvação. A ruptura é demais para ele. Para se sentir a salvo da fragmentação à qual a ruptura o levaria, o modernista faz “use, however ironically, of older (and “safer”) literary and musical forms as well as mythical topics from older literary and religious sources” (GYSIN, 2004: p. 141-142).
Na Literatura Blumenauense, a partir dos anos 60, os códigos da Blumenalva belliana realizam exatamente o fenômeno que o moderno Eliot aponta. Eles invadem os códigos de Saudade dos poetas imigrantes e os alteram, de modo a rearticular as relações, as proporções e os valores entre aqueles e estes novos códigos. Bell não abandona o padrão alemão que Schleiff utiliza para plasmar Blumenau. Ao contrário, reafirma o modelo Deutschtum, atualizando-o no tempo: no lugar dos “afiados machados” e da pintura, Bell coloca a palavra e a fotografia. Na relação que mantém com o passado, Bell pode ser tomado como poeta moderno, aquele que se conforma ao credo estético que Eliot propõe à tradição da modernidade.
A pós-modernidade, pela maneira como enxerga a língua, pontifica em Nauemblu e no tratamento que Radünz dispensa à linguagem. Quero sugerir que, neste sentido, a superação da palavra de Bell como instrumento pela palavra como auto-referência é prerrogativa da pós-modernidade como teoria, e da de Radünz como prática poética. Pós-modernidade é essencialmente palavra auto-criadora: língua e linguagem, em processo de auto-referencialidade como sugere Marshall (1992):

Postmodernism is about language. About how it controls, how it determines meaning, and how we try to exert control through language. About how language restricts, closes down, insists that it stands for some thing. Postmodernism is about how “we” are defined within that language, and within specific historical, social, cultural matrices (MARSHALL, 1992: p. 4).

Ou, ainda, como deseja Gysin (2004), a pós-modernidade “implies a text assuming a life of its own” (GYSIN, 2004: p.140), ou seja, texto autônomo. Neste aspecto, ao se subordinar às forças de auto-referencialidade da linguagem literária – poética, ficcional e outras – os escritores – poetas, ficcionistas e outros - pós-modernos, segundo Gysin:

Invert or subvert hierarchies, emphasize dislocation, antitotalization, infinite regress, etc., and, together with fabulation, textual play, and self-referentiality, they mostly valorize fragments, highlight peripheral phenomena, focusing on the centrifugal rather than the centripetal forces (GYSIN, 2004: p.142).

É no sentido que Marshall (1992) atribui à língua, à linguagem e à palavra pós-modernas, e que Gysin (2004) emprega para examinar a função do escritor na pós-modernidade, que desejo introduzir os conceitos de diferença e repetição, de Deleuze (2006). Com eles procuro sugerir que a pós-modernidade poética de Radünz se constrói a partir das formas como repete o que já se encontra na poesia de Bell, ao mesmo tempo em que se diferencia do poeta dos anos 60.
Quando colocam língua e literatura lado a lado Deleuze/Guattari (1975) apresentam dois aspetos desta relação. Primeiro, argumentam que a enunciação literária é dotada de auto-geração, dizendo que

Il n’y a pas de sujet, il n’y a que des agencements collectifs d’énonciation – et la littérature exprime ces agencements, dans les conditions ou ils ne sont pas donnés au-dehors, et ou ils existent seulement comme puissances diaboliques à venir ou comme forces revolutionnaires à construire (Deleuze/Guattari, 1975 : p. 33).

Segundo, sugerem que língua se desterritorializa, processo no qual, «le premier caractère est de toute façon que la langue y est affectée d’un fort coefficient de déterritorialisation» (Deleuze/Guattari, 1975: p.29).
O tipo de desterritorializção lingüística que interessa aqui não se refere àquele que os teóricos franceses percebem no tipo de literatura que denominam de menor, atribuída à obra de Kafka como “literatura menor”. Prefiro utilizar a idéia de desterritorialização que percorre o texto literário por meio da noção de eterno retorno, manifestado nos processos de diferença e repetição, como o examina Colebrook (2002). O estudo que realiza da obra de Deleuze permite a Colebrook afirmar que:

True literature, as minor literature, is therefore an instance of Deleuze’s concept of eternal return. The only thing that is repeated or returns is difference; no moments of life can be the same (...) The power of life is difference and repetition, or the eternal return of difference. Each event of life transforms the whole life, and does this over and over again (COLEBROOK, 2002: p. 121).

Quando se atém mais especificamente à diferença e à repetição, os dois processos que materializam o eterno retorno , Colebrook escreve que

Maximum repetition is maximum difference. Repeating the past does not mean parroting its effects, but to express an untimely power, a power of language ti disrupt identity and coherence (…) On Deleuzean model of difference and repetition, a repeated word may look the same; but it is not sameness that produces repetition so much as difference. (…) Real repetition maximizes difference (…) A minor literature repeats the past and present in order to create a future. It is a transcendental repetition: repeating the hidden forces of difference that produce texts, rather than repeating the known texts themselves (COLEBROKK, 2002: p. 119/120).

As noções de eterno retorno, de diferença e de repetição encontram-se presentes na poesia de Radünz. Percebo que, nos conjuntos de poemas analisados, tais processos se conduzem duplamente: externamente, quando Radünz repete o interesse de Bell - representante do passado poético da cidade - pela língua e seus discursos rebeiros, mas também se diferencia daquele por que, enquanto Bell atribui instrumentalidade à língua, em Radünz é a própria língua que engendra sua auto-refrencialidade. Nela, a Blumenau de Bell vira Nauemblu em Radünz. E, internamente, quando Radünz repete, nas diferentes manifestações presentes nos três livros, as várias experiências de auto-referencialidades lingüísticas de que seu texto poético é capaz.




Conclusão

O eterno retorno – ou seja, a dupla repetição e diferença do passado e do presente literários blumenauenses que a poesia de Radünz edifica – não apenas o aproxima de Deleuze, mas também o afasta de Bell e o faz romper com ele. Para Deleuze, n palavras de Colebrook (2002), a língua inovadora se vale de um único poder, “o poder da língua de romper”. O Radünz real, diferente daquele presente nos poemas, pensa diferente e rejeita rompimento com Bell.
Vejamos.
Em discussão da poesia blumenauense, escrita por alguns poetas (Martins, 1993) quando ainda não havia notado a forte presença das metáforas Blumenalva e Nauemblu, incluo Radünz no grupo dos metapoetas e digo que seu centro “é a palavra, língua e a linguagem” (p. 42), e concluo o texto, afirmando que “os poetas [metapoetas e humanistas] descritos neste artigo realizam uma proposta estética atual, sintonizada com algumas correntes que preocupam os artistas do mundo todo” (MARTINS, 1993:p.43). O próprio Radünz (1999) já expressa esta consciência em relação ao passado quando, em resposta à posição que apresento em outros artigos (MARTINS, 1999, 2000, 2002, 2004, 2005) em que afirmo que Nauemblu se conduz como ama ruptura a Blumenalva. E reage afirmando que:

Como leitura do movimento literário blumenauense, a proposição dualista de Martins omite a interinfluência entre as linguagens literárias dos protagonistas da Blumenalva e da Nauemblu e, ao propor a exclusão mútua de suas propostas, não abarca o rio subterrâneo que flui intenso – uma “influência sem angústia” – entre a poesia de Lindolf Bell, Dennis Radünz e Marcelo Steil. Nesse sentido, a precisão da análise de Martins no que concerne à contextualização ideológica das duas correntes, pouco ou nada revela da sutil coincidência das metáforas recorrentes em Radünz e Bell, por exemplo: o rio e suas águas. Riverrum, como em James Joyce, o “riocorrente” (RADÜNZ, 1999:p. 08; inédito).

Entendo a avaliação que o poeta faz da minha apreciação de Nauemblu e Blumenalva naquele momento. Agora, quero afirmar que o presente artigo procura redimensionar aquele posicionamento. Ao fazê-lo desejo sugerir que a pós-modernidade de Radünz ainda necessidade de modernidade de Bell. Incapaz de ruptura, Radünz busca uma “salvação” que garanta certo grau de segurança que a tradição literária, simbolizada da poética de Bell, ainda pode oferecer. Talvez seja essa a força do sucesso literário: manter um pé no passado, outro no futuro. E ao aproximar de Esperança a Nauemblu poética de Radünz fico imaginando como tudo isso permanecerá quando a pós-modernidade – se alguma ali estiver - de Bell for discutida.
Radünz cresce poeticamente quando se afasta da “ordem ideal” que Eliot (1989) enxerga na Modernidade e que atribuo, também, a Blumenalva. Basta um olhar à palavra para se perceber que Nauemblu não se pauta pela ordem – ideal ou real – mas pela desordem criativa. E é assim que vale apreciá-la, artística e poeticamente.

Referências

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