domingo, 3 de julho de 2011

ENCONTROS INTERÉTNICOS ENTRE INDÍGENAS E AFRO-BRASILEIROS NA LITERATURA BRASILEIRA: TEORIAS E PRÁTICAS

JOSÉ ENDOENÇA MARTINS

Este texto é ainda um esboço que se lança à discussão de potenciais relações interétnicas entre índios e afro-brasileiros em textos literários. A discussão resulta de uma disciplina oferecida, no primeiro semestre de 2007, a alunos do curso de Mestrado de Teoria Literária da Uniandrade, em Curitiba. O artigo apresenta três partes: a disciplina, a teoria e as atividades.

Disciplina

A disciplina Linguagens da Alteridade deve ser vista como continuação de Escrituras Afro-Americanas, cujo conteúdo versa sobre identidades afro-descendentes. Ministrada no segundo semestre de 2006, Escrituras Afro-Americanas se estrutura na idéia de que a experiência da diáspora permite ao afro-descendente a construção de, ao menos, três identidades diferentes: assimilacionista, nacionalista, e catalista. Procura-se relacionar a tríplice postura identitária ao tipo de comportamento que West (1993) propõe ao afro-descendente – intelectual e outros – nas suas experiências diaspóricas. Para o filósofo afro-americano “o futuro do intelectual afrodescendente não está numa atitude de deferência ao pai Ocidental, nem numa busca nostálgica do pai Africano. Ao contrário, ele reside numa negação crítica, numa preservação sábia e numa transformação insurgente desta linhagem negra que protege a terra e projeta um mundo melhor” (WEST, 1993: p. 85). Discutem-se as três atitudes, esclarecendo que, dentre elas, a mais eficiente seria a insurgente já que não enfatiza a experiência assimilacionista dos valores do Ocidente, nem privilegia a devoção nacionalista da cultura do mundo Africano, mas propõe a vivência catalista dos valores ocidentais e africanos de forma crítica, sábia e transformadora.
Com a atenção voltada à postura transformadora do afro-descendente, a disciplina Linguagens da Alteridade procura encontrar posturas insurgentes de afro-brasileiros e indígenas em alguns textos da literatura brasileira. A seleção dos textos criativos e teóricos, a orientação das análises, e a confecção das atividades obedecem ao enfoque das relações de alteridade entre os dois grupos humanos. Parte da noção de que aceitar a alteridade implica criar condições para que a autonomia do outro encontre espaço e analisa questões relacionadas às etnias, identidades e alteridades. Dá-se atenção especial a textos onde a presença de Indígenas e afro-descendentes na Literatura Brasileira se torna uma preocupação relevante. Por exemplo, na análise que Bernd (2003) realiza da literatura como base para a construção da identidade nacional, percebe-se o alerta de que a empreitada nacionalista, ao mesmo tempo em que posiciona como modelo ideal o indígena heróico (o sertanejo insubmisso, inclusive), descarta o afro-descendente. Ela explicita a denúncia:

A literatura atua em determinados momentos históricos no sentido da união da comunidade em torno de seus mitos fundadores, de seu imaginário ou de sua ideologia, tendendo a uma homogeneização discursiva, à fabricação de uma palavra exclusiva, ou seja, aquela que pratica uma ocultação sistemática do outro, ou uma apresentação inventada do outro. No caso da Literatura Brasileira este outro é o negro cuja representação é frequentemente ocultada, ou o índio cuja representação é, via de regra, inventada (BERND, 2003: p. 33).

A distância entre a invenção do indígena e a ocultação do afro-descendente fica patente na presença assimétrica dos dois grupos étnicos na obra de José de Alencar. Percebe-se a visibilidade heróica do indígena Peri no romance Guarani e a invisibilidade caricata do escravo Pedro na peça O Demônio Familiar.

Teoria

Estudos mostram que os encontros entre indígenas e afro-descendentes vão muito além da visão reducionista que a vontade de edificação da identidade nacional oferece, com base na valorização de um grupo e na depreciação do outro. No Brasil, encontros entre os dois grupos étnicos é realidade desde os tempos coloniais. O Trabalho, o comércio, as fugas, o sentimento de liberdade e o casamento interracial são algumas das motivações para que membros das duas etnias experimentem vivências comuns e partilhadas. A respeito de como tais partilhas surgem, Gomes (2002) esclarece que

Os negros fugidos provavelmente contaram com grupos indígenas para estabelecer rotas de fugas e contatos comerciais. Dominar a floresta era a primeira lição para conquistar a liberdade. A vida aí poderia ser tão dura como aquela conhecida na escravidão. Índios e fugitivos negros nas fronteiras amazônicas podem ter compartilhado experiências históricas (GOMES, 2002: p. 30).

Além dos conflitos que estes encontros sempre acarretavam outro aspecto interessante é a solidariedade como característica dos quilombos mistos. Gomes (2002) explica que naqueles quilombos, “começava a aparecer solidariedade entre índios e negros naquela terra comum que os escravizava,” (GOMES, 2002: p. 430). O autor enfatiza que a solidariedade geradora de “complexas relações entre indígenas e quilombolas pode ter propiciado recriações e re-elaborações culturais diversas” (GOMES, 2002: p. 60).
Aspecto relevante nas experiências compartilhadas de indígenas e afro-descendentes se relaciona à questão das fronteiras culturais e a contribuição que trazem para a formação das identidades através de textos identitários que se repetem. Moura (2005) sugere que “todos elaboramos textos identitários.” Também recitamos, continuamente, textos sobre nós mesmos, “em termos de investimentos de tempo, de energia, de expectativas”, elaboração e recitação que se repetem. Segundo o autor, neste encontro entre elaboração e recitação textuais, “se verifica a especialização na produção e contínua reprodução deste texto identitário, bem como sua recitação, o que pode durar (...) uma idade” (MOURA, 2005: p. 83). Hall (2003) explicita que a diáspora afro-descendente enseja continuamente a edificação de textos identitários que buscam diversas direções, o que implica na construção de impurezas identitárias, resultantes de misturas interétnicas. O autor esclarece que tais textos

São sempre o produto de sincronizações parciais, de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias subterrâneas de recodificação e transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir de materiais preexistentes. Estas formas são sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula (HALL, 2003: p. 343).

Um dos locais especiais de elaboração e recitação de textos identitários, impuros e hibridizados por partilhas culturais provindas de diferentes origens, é a sala de aula de literatura. Nela, o interesse do professor e dos estudantes dirige-se aos encontros de solidariedade de indígenas e afro-descendentes. Nesta perspectiva da sala de aula como experiências de textos identitários, minha comunicação realça o estudo de textos criativos e teóricos cujo centro é a presença compartilhada de indígenas e afro-descendentes. Por isso, o nome da disciplina As Linguagens da Alteridade se presta a esta proposta porque alia linguagem a alteridade, ou seja, aproxima textualidades de encontros interétnicos. De um lado, tem-se a linguagem com sua aposta na recepção e produção de textos e, do outro, encontra-se a alteridade com sua postura facilitadora de encontros profícuos entre sujeitos provenientes de matizes e matrizes culturais diferentes e autônomos.

Atividades

Com o desejo de ampliar os laços interétnicos entre indígenas e negros já antecipados por historiadores (GOMES, 2002), os mestrandos escrevem dois textos, uma narrativa e um ensaio crítico. A escritura do conto e do texto crítico tem a finalidade de realçar os aspectos discursivos das alteridades e das identidades. As relações de alteridade das quais participam as personagens afro-descendentes permitem que, detentoras de uma consciência “afrocentrada não estereotipada”, se desejarmos utilizar uma expressão de Ferreira (2004), possam também abrir-se a encontros com indivíduos de grupos indígenas. Para Ferreira,

Neste estágio, o indivíduo, enquanto mantém relações com pares negros, deseja estabelecer relacionamentos significativos com não negros de seu conhecimento, respeitando suas autodefinições. Está pronto, também, para realizar coalizões com membros de outros grupos organizados em torno de projetos ou valores distintos, o que, no estágio de militância, tende a não ocorrer (...) Passa a haver uma referência multicultural (FERREIRA, 2004: p. 83-84).

Enquanto o conto enfatiza os elementos ficcionais das identidades, o ensaio se concentra na análise de teorias que desejam dar conta das ficções identitárias. Em relação ao conto e ao ensaio, a perspectiva ficcional de identidades e alteridades é assim apresentada por Appiah (1997):

Toda identidade humana é construída e histórica; todo o mundo tem seu quinhão de pressupostos falsos, erros e imprecisões que a cortesia chama de “mito”, a religião, de “heresia”, e a ciência, de “magia”. Histórias inventadas, biologias inventadas e afinidades culturais inventadas vêm junto com toda identidade; cada qual é uma espécie de papel que tem que ser roteirizado, estruturado por convenções de narrativa a que o mundo jamais consegue conformar-se realmente (APPIAH, 1997: p. 243).

Além da textura ficcional das duas produções textuais percebe-se que a manipulação de diferentes gêneros literários pode dar ao tema em discussão um caráter mais amplo. Enfatiza-se, então, que, se através do ensaio crítico os mestrandos encontram em textos alheios uma abrangência do assunto, por meio do conto se tornam os construtores de encontros entre indígenas e afro-descendentes. Assim, a intertextualidade abriria espaço para aquilo que Derrida chama de suplemento e que Barthes nomeia de jogo. Ou seja, o conto entra como suplemento do ensaio e, assim, os dois textos realizam dialogismo intertextual. Tanto no suplemento textual como no jogo de textos a significação reside no inter-texto, ou na conversa entre textos.
Por questões de tempo e de espaço esta analise se atém ao conto. Começo com a discussão do conto de Paulo Pestana. Na sua narrativa, intitulada A Fuga de Tia Nastácia, o autor faz o encontro interétnico se dar entre a protagonista Tia Anastácia, personagem afro-descendente do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, e um grupo de indígenas que habita as proximidades do Sítio. Pestana a transforma na exímia contadora de histórias afro-descendentes cuja missão de alteridade é levar as experiências das divindades afro-brasileiras aos vizinhos indígenas. A receptividade por parte dos ouvintes é extraordinária e a amizade que se estabelece entre todos é a resposta que ela aguardava, uma vez que seu objetivo é justamente este. “Venho fazer amigos/E isso é tudo o que eu quero” (p. 06), é como ela se apresenta aos indígenas. A cordialidade logo se estabelece entre ela e seus atentos ouvintes. Antes de começar a contar suas histórias Tia Nastácia lhes diz que uma história é como a amizade, cujo conteúdo, segundo ela, “não se ouve com o ouvidos/mas sim com o coração” (p. 07).
Através do ato de contar histórias, Tia Nastácia desempenha o papel de Exu mediador, aquele se transforma na ponte que vai unir culturas diferentes. A receptividade dos indígenas às narrativas da narradora afro-descendente evidencia a postura exuísta dos ouvintes. Gates (1988) argumenta que a alteridade autônoma dos dois lados se torna possível porque “a multiplicidade divina do deus advém do fato de que cada deus tem seu Exu; e a cultural, da aceitação de que cada ser humano carrega um Exu dentro de si. Uma pessoa que não tenha um Exu no seu corpo não existe e nem sabe que está viva” (GATES, 1988: p.37),
Imantando os corações pela amizade e pela narrativa, Tia Anastácia conta aos anfitriões, inicialmente, a historia de Iemanjá. A narradora se concentra nos dissabores amorosos que a deusa vive na vida que leva com o marido Okere. Para escapar da perseguição do marido Iemanjá se transforma nas águas de um rio e, assim, pode correr mais depressa. Okere, então, se transforma numa montanha para impedir que o rio-Iemanjá possa avançar na sua fuga. Com a ajuda de Xangô, o rio se enche com as águas da chuva e a montanha se desfaz pela força de raios enviados pelo deus. Iemanjá, então, consegue chegar ao mar nas águas do rio. Aí, ela pode ser vista como uma mulher muito bonita, os cabelos compridos, uma estrela brilhante na cabeça e pérolas nas mãos. É a deusa do mar
A segunda história que Pestana coloca na contação de Tia Nastácia também fala dos amores complexos entre os deuses afro-descendentes. A contadora, desta vez, envolve a deusa Oxum e Xangô na nova narrativa. Exu passa a intermediar a relação dos dois, instruindo-os a respeito de como o amor verdadeiro nasce da livre e espontânea decisão de cada um. Xangô, porém, esquece os ensinamentos de Exu e prende Oxum numa torre alta para tê-la ao seu lado. O choro da moça chama a atenção de Exu que vai buscar Olorum a pedido da deusa. Para que ela consiga escapar da prisão Olorum a transforma numa pombinha. Hoje, ela vive nas águas de um rio como deusa das águas doces.
A terceira história de Tia Nastácia também envolve conflito entre os personagens. Desobedecendo a Iemanjá, sua mãe, Oxossi adentra a mata de Ossaim, o poderoso deus dos segredos de todas as folhas. Como suspeita a mãe, o filho é levado a beber um chá de folhas, perde a memória e se torna no escravo de Ossaim. A intercessão do irmão Ogum em favor do desobediente Oxossi não convence Iemanjá a perdoar a desobediência do filho. Sem o perdão da mãe, Oxossi se vê obrigado a voltar ao mundo de Ossaim. Aí, adquire o conhecimento dos mistérios das florestas e se transforma no defensor extraordinário das plantas e dos animais.
O encontro entre Tia Nastácia e os ouvintes dura o tempo das histórias. Terminada a missão, ela volta ao Sitio do Pica-Pau Amarelo, vestida como chegou, o que deve ter encantado seus ouvintes. Pestana dá os tons de como a contadora de historias havia se preparado para a visita aos indígenas:

Foi num domingo que ela acordou bem mais cedo. Estava decidida a procurar a tribo de que lhe falara o caçador. Tomou um belo banho, colocou umas roupas coloridíssimas, lenço colorido na cabeça em forma de turbante combinando com seu vestido, lindos brincos e argola, pulseiras coloridas e sandália de couro envernizado. Estava mesmo muito bonita. Parecia essas lindas mulheres africanas que vemos nas folhinhas de calendário ou nos filmes americanos. Se alguém a visse, não a reconheceria, tamanha a transformação (PESTANA, 2007, p. 1-2).

No conto Três Corações – Um Só Povo, Raquel Bittencourt amplia as relações que Pestana desenvolve entre os indígenas e Tia Nastácia ao incluir a presença do homem branco. Desta maneira, a narrativa de Bittencourt se suporta na idéia de que as sociedades indígenas estão abertas à interação com outros povos e, por isso, se tornam corpos vivos e dinâmicos. Neste sentido, os contos de Pestana e Bittencourt se aproximam da posição de Silveira (2005) de que as sociedades indígenas “são dinâmicas, capazes de mudanças, esclarecem que não são contra os avanços, apenas contra o domínio do frio mercado, contra o sistema que aliena, miserabiliza” (SILVEIRA, 2005: p. 39).
Se no conto de Pestana o grupo indígena que ouve as histórias de Tia Nastácia aparece num contexto de estabilidade – nada perturba a audição das histórias –, na narrativa de Bittencourt, o pequeno grupo de indígenas caiapós que recebe a equipe de arqueólogos ainda se encontra em busca de uma vida estável. É, justamente nesta situação de necessidade de encontrar o resto da tribo da qual havia se separado há 50 anos, que estes caiapós se encontram com os arqueólogos. Do encontro todos saem fortalecidos culturalmente, os ganhos de alteridade são maiores do que as perdas. O encontro entre a loira arqueóloga Luana e o guerreiro indígena Takak somente não vai além da amizade por causa do encantamento que ela sente por Edinardo, o afro-descendente colega de descobertas arqueológicas. O tipo de encontro mais intenso entre um indígena e um arqueólogo se estabelece entre Fernando e Awá. Motivada pela relação amorosa que se cria entre os dois, Bittencourt amplia os papéis dos amantes. Os dois não apenas se casam segundo as leis dos caiapós, mas vão viver uma vida comum mais tarde, com o filho que está para nascer, quando a missão dos estudiosos encerra suas pesquisas. O comentário do narrador dá a dimensão da nova vida que o casal vai viver:

O arqueólogo olhou para sua esposa caiapó. Ela era linda, exoticamente linda. Na realidade, este casamento às pressas foi bem-vindo na vida dele. Já estava com quase trinta anos, era tempo de arranjar uma esposa e constituir família, teria de aprender o dialeto que [Awá] falava e ensinar algumas coisas a ela. Era hora de trocar experiências, de aceitar as diferenças e aprender mais sobre o outro (BITTENCOURT, 2007: p. 12).
Aspectos relevantes aparecem nos sujeitos que se abrem aos processos de alteridade. Através de Tia Nastácia, Pestana faz o compromisso interétnico do afro-brasileiro voltar-se à cultura oral dos ancestrais. Com Fernando de Bittencourt, pode-se ver a responsabilidade científica se mesclando com a atenção amorosa. Tanto a negra Nastácia quanto o branco Fernando carregam em si os elementos que fazem de Exu o mediador intercultural por excelência. A presença de Exu em Fernando, enfatizada pelo personagem afro-brasileiro Edinardo, fica evidente nas palavras do narrador:

Edinardo tinha razão, ele [Fernando] foi Exu, conseguiu mesmo sem querer, ligar o mundo dos brancos com o mundo dos indígenas. Ele havia aprendido muito com os afro-descendentes e este era o lado bom da miscigenação, porque a cultura desse povo não empobreceu, muito pelo contrário, somou com a do branco, e ambos ganharam em sabedoria (BITTENCOURT, 2007: 12).

Se se busca uma relação intercultural entre índios e negros no conto de Bittencourt ela se dá de duas maneiras: uma, de forma direta, através de Edinardo, o arqueólogo afro-descendente presente no grupo de cientistas. Ele também, como Fernando, desenvolve relações, embora incipientes, como a indígena Awá que, mais tarde se torna, esposa de Fernando. A outra de forma indireta, através de Fernando, detentor do comportamento mediador de Exu, a divindade afro-descendente.
Outro aspecto que envolve os papéis interétnicos dos indígenas merece menção. No conto de Pestana, a presença indígena se dá da maneira como aqueles guaranis se dispõem a ouvir as histórias afro-centradas de Tia Nastácia. Esta abertura às experiências do outro, que é uma predisposição ativa à alteridade, talvez se explique pela perda cultural pela qual passaram como dá a entender um caçador local: “mas não índios que usam penachos e pintam o corpo – dizia o homem – pelo que me pareceu, são pacíficos e já perderam quase todos os costumes tradicionais” (PESTANA, 2007: p. 01). O conto de Pestana parece sugerir que conhecer as histórias dos outros pode abrir caminho para a recuperação da própria história. Em outras palavras, o respeito às experiências alheias podem abrir portas às histórias de nós mesmos que esquecemos. Evidencia desta tendência talvez se encontre nas palavras da índia guarani que indaga da contadora de histórias diante dela: ”Tia Nastácia – perguntou a indiazinha Janaína – só existia Iemanjá de mulher?“ (PESTANA, 2007: p. 07).
A alteridade indígena no conto de Bittencourt é variada. No ambiente cultural indígena, ou seja na aldeia, percebem-se os comportamentos interétnicos protagonizados por Takak e Awá. Fora da aldeia, tem-se a presença de dois cientistas caiapós entre os arqueólogos que chegam ao agrupamento. Dentro e fora do agrupamento, os caiapós – simbolizados em Takak, Awá e os arqueólogos Bebidirti Metuktire e Bebijore – não perderam suas culturas como acontece com os guaranis da ficção de Pestana. Ao contrário, fortalecidos pelos laços culturais que os unem, eles seguem, com os arqueólogos, ao encontro da outra parte da população da qual haviam se apartado.

Conclusão

Se a noção de alteridade implica a autonomia do outro ainda temos muito caminho a percorrer, tanto na Literatura Brasileira e na sala de aula de literatura. A literatura ainda deve ao afro-descendente um espaço à altura da sua contribuição à fortuna literária nacional. A sala de aula ainda deve uma resposta eficaz à lei 10.639. As narrativas de Pestana e Bittencourt procuram responder a duas perguntas insistentes: onde se encontra a presença do negro na literatura indígena? Onde se coloca o indígena na literatura do afro-descendente? Deixo as perguntas para nossa reflexão e adiciono outra preocupação. Penso que podemos ampliar as questões interétnicas e de alteridade para além dos contornos da Literatura Brasileira. Podemos levar os estudos da alteridade aos textos literários da África, das Américas, do Caribe e da Europa.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de O Demônio Familiar: Comédia em Quatro Atos.Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
___O Guarani. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.
APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai: A África na Filosofia da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.
BITTENCOURT, Raquel Pereira Três Corações : Um só Povo. Curitiba: Mímeo, 2007.
GATES, Henry Louis. The Signifying Monkey: A Theory of African-American Literary Criticism. Oxford: Oxford University Press, 1988.
GOMES, F. dos S. “Amostras Humanas”: Índios, Negros e Relações Interétnicas no Brasil Colonial. In: MAGGIE, Yvonne & REZENDE, Cláudia Barcellos (orgs.). Raça como Retórica: a Construção da Diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 27-72.
MOURA, Milton. Identidades. In: RUBIM, Antônio A. C. (org.). Cultura e Atualidade. Salvador: EDUFBA, 2005, p. 77-91.
PESTANA, Paulo S. A Fuga da Tia Nastácia. Curitiba: Mímeo, 2007
SILVEIRA, Renato da. Etnicidade. In: RUBIM, Antônio A. C (org.). Cultura e Atualidade. Salvador: EDUFBA, 2005, p. 29-46.
WEST, Cornel. Keeping Faith: Philosophy and Race in America. London: Routledge, 1993.

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