quinta-feira, 21 de julho de 2011

MALCOLM OUVE SHAKESPEARE

JOSÉ ENDOENÇA MARTINS

Para Mara, best cat lover.


Dos três é o último a chegar. Primeiro, Tea Cake; depois, Aimé. Mara o encontra na rua. Um ou dois dias no veterinário. Vacinas tomadas, medicado, identificado, fichado. 20 dias de vida, quase. Preto, meio estrábico. Nome de batismo: Malcolm X. Na dissertação, Mara posta agradecimento a ele. A Tea Cake e Aimé, também. “Me ajudaram a relaxar durante o processo de escrita,” ela esclarece.
Acorda comigo às cinco. Todo dia. Diante do computador, sobe-me ao ombro. Aí fica pousado. Quieto, dorme, em equilíbrio perpétuo. Como é muito leve, me esqueço dele. Às vezes, ouço um som. Penso que é minha asma. É ele que ressona. Ou ronrona. Quando me levanto para pegar um livro, não se dá por achado. Os meus passos não lhe interrompem o sono. Os ombros devem ser quentes. Se tivessem tetas, mamaria. Não tenho certeza, mas acho que nunca mamou.
Às vezes, me flagro com Malcolm ao lado do computador. Reviso um texto em voz alta. Ele me olha atento, humanamente. Fixa o olhar nos meus lábios. Faz leitura labial. Mia quando paro de ler. Pára o miado quando retomo a leitura. Está hipnotizado, novamente. Volto-me para ele. Que beba as palavras. Dirijo-me à estante, retiro a autobiografia de Malcolm X. “Presta atenção, Malcolm,” advirto, “esta e a vida do teu patrono.” Mostro-lhe a capa. Nela, o verdadeiro Malcolm discursa em público. Diante do microfone, o líder levanta a mão direita, fechada, os lábios entre-abertos. Abro o livro ao acaso: Chapter Twelfe – Savior. Salvador. Penso em Mara. “Ela te resgatou, Malcolm,” digo-lhe, “e te trouxe para nós.”
Todo dia, me encontra diante do computador. Quando não galga minhas costas para adormecer nos ombros, se coloca em posição para ouvir sobre a vida do patrono. Poesia também o encanta. Percebo que aliterações o fascinam. Declamo, então, lentamente, os versos famosos do poeta do Desterro. Carrego nos “Vs” das palavras vozes, veladas, veludosos, volúpias, violões, vagam, velhos, vórtices, ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. Quando paro, ele mia. Quando repito os “Vs”, ele silencia.
No domingo, introduzo-o a Shakespeare. Aos nomes dos personagens, primeiramente. Hamlet, Othelo, Juliet, Ofelia, Miranda, Ceaser, Mark Anthony. Outros, também. Depois, coloco-o diante de algumas falas. Ele rejubila. Sinto nos olhos. Na segunda, penso ter ouvido “to be or not to be.” Ontem, ele me surpreendeu. “I came to bury Ceaser, not to praise him” (Vim para enterrar César, não para louvá-lo). Essa eu ouvi direito, mesmo. Eu estava lá, meninos, e ouvi. Juro.

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